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Luto, cansaços e dores: o ordinário que impacta na literatura Mahana Cassiavillani

por Aline Teixeira


Em terceiro livro de contos, autora escancara situações e sensações controversas nas entrelinhas do cotidiano.


Os dias de uma pessoa são cercados por acontecimentos, dos mais banais aos mais complexos. Afinal, a vida acontece e a pessoa é convidada indispensável desse grande evento, quer ela queira, quer não.  As relações interpessoais e intrapessoais ditam o desenrolar da festa e o caminho a um desfecho quase sempre inesperado, que pode tanto ser breve quanto durar uma existência toda.

De tão constantes, os tais acontecimentos, ainda que de dimensões incalculáveis, acabam por se tornar triviais e deixam de reivindicar a atenção muitas vezes necessária a nível pessoal e social. Cada qual vive sua vida conforme acredita ser correto, cada um faz o que acha que deve ser feito, todo mundo tem direito de expressar ou esconder sua opinião e ai de quem contestar. E ninguém mais contesta, às vezes sequer sente. Tudo está normalizado, nada mais choca. Até que um livro, que narra situações corriqueiras, coloca o dedo na ferida, cutuca e mostra que as coisas não são tão normais assim.

Através de uma coletânea de contos simples, porém incisivos, a escritora paulista Mahana Cassiavillani apresenta seu terceiro livro e mostra sua potência narrativa ao falar sobre acontecimentos vistos no dia a dia de forma a atingir o leitor em cheio, causando tanto identificação quanto repulsa.

A literatura como estilo de vida e salvadora de vidas

Há quem diga que a literatura não serve para nada, há quem diga que ela é capaz de salvar vidas. Mahana Cassiavillani é do time das pessoas que acreditam que só a literatura salva, tanto que está presente em sua vida desde que se conhece por gente e a acompanha nos momentos bons e nos momentos de dificuldade.

Nascida na cidade de Santo André (SP) em 1983, desde pequena viu o fascínio literário brotar ao folhear páginas de livros infantis logo na primeira infância, encanto que continuou na adolescência e seguiu até encontrar um gosto e estilo próprios, incorporados à sua personalidade e refletidos em seu trabalho.

A paixão pela arte da escrita levou Mahana às Letras, formando-se pela Universidade de São Paulo (USP), seguindo para a pós-graduação em Estudos Brasileiros pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e o mestrado em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Logo na estreia como contista, ganhou uma seção só para ela na revista Ponto da editora SESI, a Ponto do Novo Conto. Depois, se juntou ao grupo Work in Progress, dirigido pelo vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura e finalista do Jabuti Marcelo Maluf, autor de A imensidão íntima dos carneiros.

Elogiada por seus colegas pela facilidade em cativar e causar estranhamento com seus escritos, Mahana publicou seu primeiro livro, Deus é bom e o diabo também (editora Dobradura), lançado em 2017, onde já mostra o que vem a ser sua marca registrada, o domínio pleno na escrita de contos que permeiam o lirismo e a pungência de forma concisa. Característica esta também impressa no segundo trabalho, o livro O caminho da serpente (editora Fábrica de Cânones), de 2020.

Agora, com seu terceiro livro de contos, o estilo Mahana Cassiavillani de literatura se confirma e firma seu nome como um dos mais potentes no gênero, dispondo-se a contar coisas que todos sabem, todos sentem, mas nem todos admitem ou querem enxergar.

Dores que cansam, cansaços que doem

Uma infinidade de sentimentos faz parte da essência humana e nos acompanha constantemente. Alguns deles nem sabemos nomear, outros resumimos como uma coisa só. No caso do título do novo livro de Mahana Cassiavillani, vários deles foram englobados em três que, por sinal, descrevem com perfeição muito daquilo que não encontramos denominação adequada: Luto, cansaços e dores.

A tríade que nomeia a obra também encabeça as três partes em que o livro é dividido. Em Luto, ficam os relatos mais breves, mas com tamanha profundidade que as palavras não se fazem necessárias. Já em Cansaços, a proximidade com o cotidiano é gritante e quase impossível se esquivar de uma identificação, seja na própria vida, seja na vida de algum conhecido. Dores abarca o último estágio de um sentir que não vê mais rotas de fuga e muitas vezes se resigna.

Se por um lado temos aquilo que está entranhado na pessoa e que nem sempre está à mostra (por vontade ou por falta de oportunidade), por outro lado estão as relações humanas e suas complexidades. Com esses elementos-chave, Mahana brinca de nos contar histórias de indivíduos que poderiam ser qualquer pessoa e esse “ser qualquer pessoa” é o que mexe com o leitor – mexe com o ego, mexe com os princípios, mexe com ideologias, mexe com os pré-conceitos. Esse mexer incomoda, confronta e faz com que ora se compartilhe as emoções, ora as repudie, julgando-as incabíveis.

Ao se tratar de pessoas e da convivência mútua, as expectativas são pontos cruciais que, em grande parte, ditam as regras da vivência de alguém. Expectativas são criadas em diversos níveis e a autora aborda uma porção deles através do relacionamento de pais e filhos, relações profissionais, conjugais e até consigo próprio.

A beleza de Mahana está em colocar o peso devido às situações sem o colocar de fato. Com escrita suave atribuída aos pensamentos e devaneios, a autora evidencia calos e feridas de forma chocante, sem perder o tom sarcástico e irônico, o que torna a leitura absurdamente divertida. Absurdo porque muitas das situações não são engraçadas, são angustiantes. Outro ponto forte é a imparcialidade, seus narradores são diversos e suas narrativas não os julgam, independentemente do lado em que eles estejam; eles simplesmente são.

O emaranhado de sentimentos apresentado demonstra as dores inerentes e causadas, essas dores cansam e o sentimento é passado a quem acompanha os contos curtos, porém intensos. Esse cansaço faz doer e dói no físico, o leitor também sente isso. No luto, há uma combinação de ambos e isso torna a obra de Mahana completa. Com pouco mais de 100 páginas, Luto, cansaços e dores é um dos mais novos lançamentos da Editora Moinhos e marca a chegada de Mahana Cassiavillani à casa, somando ao time de autores com sua potência e singularidade que a colocam no patamar de grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.


Você pode conhecer o livro clicando aqui.


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Sobre “Todo esse amor que inventamos para nós”…

Um livro de 150 páginas divididas em 31 contos. O suficiente para criar um catálogo de infernos possíveis à realidade do homem gay no Brasil contemporâneo. O suficiente para desvelar, dentro de cada um desses infernos, a possibilidade da felicidade pela fagulha do desejo que nasce e que parece durar alguns segundos – e toda uma eternidade. ⠀

Dolorosos, os contos narram o cotidiano cruel daqueles que antes de perceberem seus afetos e de entenderem seus corpos já são condenados pela sociedade. Com violências que ocorrem tanto dentro de casa como na rua, não há aqui espaço seguro nem garantia de que uma hora algo vai melhorar. O leitor vive aquele instante de descoberta que acarreta num interminável terror como se estivesse dentro do trauma que qualquer um faria questão de esquecer. ⠀

E o que há de mais especial no trabalho de Raimundo Neto é que suas narrativas, que poderiam tratar dum corriqueiro infernal, ganha lugar de reflexão por meio de uma linguagem trabalhada. E aqui há um elemento realmente interessante: não é a pessoa que se dissolve em questionamentos internos, como vemos em Caio Fernando Abreu, por exemplo, mas sim a própria palavra. ⠀

Assim, cria-se um véu em que somos obrigados a enxergar em frestas ou em meio a olhares sujos e opacos o que está acontecendo. Isso faz com que nós, leitores, tenhamos que completar a cena, interpretar a situação e, junto a isso, levantar nossos preconceitos. É uma experiência bastante sensorial, digna da boa produção literária brasileira.

por Paulo Lannes

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Gabriel Fragoso, sua baleia morta e uma colcha de retalhos

por Aline Teixeira

Autor estreia com livro de contos que revelam sentimentos tão inerentes quanto conflitantes.

Um livro carrega consigo um leque de possibilidades, as quais só são descobertas no decorrer da leitura. Alguns, em poucas páginas, já relevam mundos fantásticos; outros quase agem como teste vocacional ao provar os dotes policiais, científicos ou acadêmicos do leitor. Tem livros que prometem e cumprem a missão de fazer chorar, aquecer o coração ou render bons sustos. E há aqueles que enganam.

Ler relatos do dia a dia de alguém, ainda que na ficção, pode parecer uma zona de conforto. Todos acordamos, tomamos café, lavamos a louça, vez ou outra apreciamos uma obra de arte, não é mesmo? O que torna as coisas um pouco mais complexas é quando se é pego de surpresa pelo que há nas entrelinhas, coisas que às vezes são reveladas somente no último parágrafo, na última palavra, na última página. É aí que vem a comoção, a indignação, o encanto, a raiva, até a vergonha pelo sentimento compartilhado.

Em sua estreia na literatura, o escritor gaúcho Gabriel Fragoso apresenta 12 contos em uma obra delicada, intensa e sensorial, que pode se encaixar na categoria dos livros que enganam, mas que não subestimam.

Sensibilidade artística traduzida em palavras

Encontrar potência e delicadeza na mesma medida em uma obra literária é um presente. Saber que a obra é um livro de estreia torna a surpresa ainda mais grata. No caso de Gabriel Fragoso, prévias desse talento – que podemos chamar de dom – vêm sendo mostradas em outras artes antes da escrita.

O escritor de 27 anos de idade nasceu em Torres, litoral gaúcho, e mostra suas veias artísticas desde muito novo como bailarino, transmitindo através da expressão corporal a intensidade e a leveza requeridas pela dança. Como artista visual, expressa em seus projetos fotográficos, de ilustrações e de colagens, a mesma força capaz de causar impacto a quem aprecia.

Tamanha sensibilidade não poderia deixar a escrita de fora e, de fato, a escrita faz parte da vida de Gabriel. Publicitário de formação, usou a comunicação para publicar seus textos em revistas, coletâneas, trabalhar com literatura e partir para os estudos na área, graduando-se em Escrita Criativa pela PUCRS e já se preparando para um mestrado.

Alguns de seus textos receberam prêmios e agora Gabriel mostra o talento com a publicação de seu primeiro livro, angariando mais um novo feito em seu ciclo artístico, evidenciando (novamente) sua capacidade de atingir em cheio quem aprecia sua arte e o tornando uma grande promessa para o meio literário.

Tão intenso quanto a fome

Há títulos que dizem muito sobre o livro, mesmo quando parecem não ter sentido. Da mesma forma, há livros que fazem todo o sentido, ainda que pareçam absurdos ou tão corriqueiros que não reservam nada além do habitual. É justamente com um título aparentemente absurdo e escrita simples que Gabriel Fragoso faz incisões precisas no que cada um dos 12 contos propõe, como bisturis que cortam a carne e chegam naquele lugar profundo, tão profundo que não é palpável, mas intensamente sentido.

Baleia morta e outras fomes é um compilado de breves relatos que, de algum modo, conectam entre si e se conectam com quem os lê. O formato dessa colcha de retalhos é percebido aos poucos, às vezes quando menos se espera ou quando tanto se deseja, para que o sentimento provocado tenha uma justificativa.

Entre o solidarizar com o sofrimento, o extasiar com um momento de prazer e o repugnar com uma cena de tortura, com palavras que parecem um tomar pela mão, o autor encaminha o leitor por um banquete de sensações extremas e o deixa com fome, com aquela vontade que vem do âmago por saber mais, por experimentar mais. E Gabriel, como um habilidoso chef, põe à mesa uma variedade de sentimentos que todos têm, mas nem todos – nem sempre – gostam de sentir, embora queiram, até precisem e sequer se dão conta.

Gabriel imprime sua marca que mescla intensidade com sensibilidade e complementa ao trazer as artes ao livro, especificamente uma obra de arte, o quadro Vista das areias de Scheveningen de Hendrik Van Anthonissen, cujo a impressão literal da imagem empresta o nome à obra e o sentindo que se esconde nas pinceladas e nas entrelinham dá o tom de todo o trabalho, em especial do conto-título, um dos mais significativos da coletânea. É o óbvio que está escondido e que se torna estranho ao ser revelado, como uma frase que soa bizarra ao ser dita em voz alta. Com ilustrações de Gustavo Lindermann e posfácio de Altair Martins, Baleia morta e outras fomes faz parte do catálogo de lançamentos do primeiro semestre de 2021 da Editora Moinhos, colocando Gabriel Fragoso no hall de escritores brasileiros da casa, produtores de literatura nacional contemporânea de qualidade.

Conheça Baleia morta e outras fomes clicando aqui

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Cristina Bendek: Identidade, cultura e cenário sociopolítico em obra de estreia

Novela da escritora colombiana ganhou a primeira edição do Prêmio de Novela Elisa Mújica, em 2018.

O ato de deixar a terra natal pode representar tanto a busca por novas experiências em diferentes ares quanto a fuga de uma realidade nem sempre desejada. Mas o ditado “nós saímos da cidade onde nascemos, mas a cidade onde nascemos não sai de nós” por diversas vezes se faz verdadeiro e o retorno acaba sendo inevitável.

Embora as origens clamem pelo regresso, inevitável também é o choque de realidade ao constatar que aquele lugar-berço já não é mais o mesmo. Sentir-se pessoa estrangeira no próprio lar e perceber que, assim como mudamos com o tempo, a influência dos acontecimentos externos contribui para a formação de novas características acatadas como típicas de um povo, resultando em sua ascensão ou declínio.

Em uma mistura de ficção e crônica, a escritora colombiana Cristina Bendek retrata a realidade de sua ilha natal e a cultura local ao narrar as descobertas sobre as origens de uma filha desgarrada da terra.

os cristais do sal imagem capa

Ficção que evidencia a realidade

O indubitável tom de crítica social logo em um primeiro trabalho literário talvez se explique com a própria vivência da autora. Cristina Bendek nasceu em San Andrés (Colômbia), mas transitou entre Bogotá e Cidade do México durante treze anos. Graduou-se como profissional em Governo e Relações Internacionais e, em 2016, regressou à sua ilha natal para se dedicar à escrita, aliando o ofício aos trabalhos de empreendedorismo, jornalismo e crítica.

Pelo longo período de deslocamento, o choque em decorrência das perceptíveis mudanças no cenário tão conhecido da infância é uma consequência inevitável. A chegada da modernidade, a urbanização e a exploração do turismo ao vender uma imagem paradisíaca da ilha fazem um contraponto com a ruralidade, a cultura local e a identidade raizal da população de San Andrés.

A intensa percepção da realidade contraditória da ilha – o perfeito refúgio turístico caribenho que esconde a escravidão econômica e o descaso político perante o continente – é exposta na obra de Bendek, que relatou que sua novela de estreia tem muito de crônica, pois, apesar da ficção e da poesia contida em sua narrativa, retrata a realidade por ela percebida e, então, transformada em arte na forma literária.

Trabalho tão intimamente vivido e apresentado de modo a instigar reflexões acerca de questões políticas e sociais rendeu à jovem escritora, nascida em 1987, o Prêmio Nacional de Narrativas Elisa Mújica, promovido por Idartes e Laguna Libros (voltado exclusivamente a escritoras para promover a literatura feminina na Colômbia), em sua primeira edição no ano de 2018.

A busca pelas origens, o encontro com a nova realidade

Cristina Bendek presenteou a literatura do Caribe (e também a latino-americana) com a novela Os cristais do sal, obra que representa a realidade dos habitantes da ilha de San Andrés, tanto no quesito cultural quanto no âmbito social, econômico e político.

Ao narrar os passos de Victoria Baruq, a autora põe em foco a vida dos islenhos conhecidos como raizais, povo oriundo de uma miscelânea de etnias, do arquipélago e do continente, que acabaram por criar uma identidade própria, ao mesmo tempo em que não se sentem pertencentes a lugar algum, não se consideram provenientes de uma origem única. É a busca por tal origem que move os caminhos trilhados pela protagonista que, com o sentimento de não-pertença, deixa sua terra-mãe em busca de novos rumos, mas não escapa do magnetismo do seu berço.

Em meio a encontros e desencontros, achados e perdidos, o holofote é direcionado a outro ponto importante para a ilha caribenha que, com o passar do tempo, vê a chegada dos avanços da modernidade e a oportunidade no ramo do turismo. O que muito tem de promissor, pouco tem de retorno ao se deparar com a negligência do Estado para com os habitantes da ilha, a falta de infraestrutura para os residentes contrasta com o que é oferecido aos turistas. O choque de realidade decorrente da globalização não foge aos olhos da personagem do livro, assim como escancara a ferida da exploração encoberta pelos folhetos e fotos de belas praias.

Apesar de carregar o peso de uma nação, Bendek alivia o fardo com sua escrita que traz os elementos críticos da crônica e a leveza da poesia. A busca pela identidade através do resgate genealógico é o retrato de muitos filhos de uma terra a qual se sentem tão íntimos e, ainda assim, tão distantes. Essa característica, além de laurear a autora sanandresana, coloca o arquipélago em destaque na literatura nacional colombiana.

Os cristais do sal chega ao Brasil pela Editora Moinhos, no catálogo de lançamentos do primeiro semestre de 2021. Com tradução de Silvia Massimini Felix, o livro carrega uma premissa realista um tanto densa, sem abrir mão da suavidade dos eventos corriqueiros, atraindo os olhares para uma autora que ainda pode contribuir muito para a literatura latino-americana.

Clique aqui para conhecer Os cristais do sal, de Cristina Bendek

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Entrevista com Michel de Oliveira

Michel de Oliveira Entrevista

Depois de duas coletâneas de contos, você agora apresenta ao público um livro de poesias. O que o fez se aventurar nesse estilo? Era algo que já estava em seus planos?

Sempre me considerei prosador, nem na adolescência escrevi versos. Foi uma surpresa para mim quando, nos últimos anos, brinquei de escrever poesias. Fazia isso nas notas do celular, às vezes enviava para algum amigo ou amiga dizendo com ironia: vou virar poeta agora. E ríamos. Daí veio a pandemia, um completo esgotamento mental, não queria ler, nem saber das notícias. De forma muito espontânea, ao tentar escrever um conto, saiu em verso, e eu respeitei. Então decidi reunir as poesias que estavam no celular e me surpreendi com a quantidade: mais de 50. Uma parte significativa delas sobre amor ou paixão. Descobri um embrião de livro não planejado e decidi levar a gestação criativa adiante. Brinquei de escrever mais uns poemas, arquitetei a estrutura interna da obra e aí está O amor são tontas coisas.

Para você, houve muita diferença no processo criativo entre as narrativas curtas dos contos e microcontos para os versos dos poemas?

No que diz respeito à motivação para a escrita, não. Sigo escrevendo de forma intuitiva e sem planejamento, quando algo me afeta, incomoda ou surpreende. Mas o desenrolar do processo foi bem diferente, porque as poesias nascem prontas. Se eu mexo demais, acabo estragando. Então não precisei fazer mil edições, com os contos o processo todo é mais lento. Acabei me divertindo escrevendo e organizando as poesias, porque na minha cabeça era uma grande brincadeira. Agora, que o livro está pronto e vai ganhar o mundo, me bate certo desespero, porque saí total da minha zona de conforto e não faço ideia de como leitores e leitoras receberão essa brincadeira poética. Espero não passar vergonha.

O trocadilho no título O amor são tontas coisas o torna um tanto emblemático e faz aguçar a curiosidade sobre o que encontrar nos poemas do livro. O que da relação entre o quantitativo e o qualitativo do sentimento o levou a essa escolha?

Nem sei direito de onde veio a ideia do título, mas anotei no celular: o amor são tantas coisas. Gostava dele, mas ainda não era o que eu queria dizer com o livro. Foi quando, por brincadeira, troquei o tantas por tontas e ficou. Enquanto respondo a esta entrevista, penso que a mudança foi influenciada pela motivação de divertimento que me levou a escrever os poemas. De alguma forma, eu estava buscado uma fuga para a severidade das coisas, do momento histórico, da vida e do próprio tema amor, que sempre é tratado como algo grande, colossal. O amor abordado pelo livro é pequeno, como os poemas; uma bobagem que alegra o dia, feito uma cereja; e meio sem sentido, uma tontice que nos tira do eixo. Ou coloca no eixo certo, não sei.  

Em seus trabalhos anteriores, por mais distintos que sejam entre si, nota-se uma perspicácia capaz de promover intensidade e até choque durante a leitura. Também se detecta esse traço nos poemas de O amor são tontas coisas. Há alguma expectativa quanto à experiência que os leitores terão com o seu estilo de escrita?

Meus primeiros escritos tinham a intenção explícita de incomodar. Era minha motivação jogar pedras em quem me lesse. Mas passei a me sentir um pinscher raivoso latindo no portão e fui ficando mais calmo. Achava eu que minha escrita tinha passado por uma grande mudança, mas quem me lê ainda fala de intensidade, choque, incômodo. Então havia algo para além da intenção de provocar incômodo. Pensando em voz alta, talvez isso venha da escrita direta, sem rodeios. Minha literatura é pouco literária, no sentido de não ter firulas, enfeites desnecessários para parecer poético, profundo e inteligente. Talvez seja a honestidade que choque, não sei.

Agora que você já publicou livros de contos e poesia, podemos esperar para breve um romance de sua autoria?

Meu segundo livro, em ordem de escrita, é um romance, porém outros projetos passaram na frente dele. O amor são tontas coisas, por exemplo, foi o último a ser escrito e furou a fila. A poesia parece mais ansiosa do que a prosa. Para mim, ao menos, está sendo. Se ficasse de molho, como os outros projetos, é bem possível que eu desistisse de publicar. A narrativa longa demanda um tempo grande de maturação, o que me irrita. Gosto de coisas rápidas, por isso meu apreço maior pelo conto. Se dependesse da minha vontade, já teria publicado. Mas os outros projetos pediram urgência, obedeci. Em breve, talvez, o romance seja publicado, quem sabe.

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Coração e vísceras entremeados em poemas de Michel de Oliveira

Autor de O sagrado coração do homem lança seu primeiro livro de poesia

Quando se fala em poesia, somos remetidos a textos escritos em versos que, com certa leveza, despertam em nós sentimentos variados. Embora não seja uma regra – e esteja bem longe disso –, quando o assunto é poesia o primeiro sentimento que vem à mente é o amor, o qual dizemos ser expresso com palavras quase sempre doces vindas do coração.

Porém, tanto a poesia não fala só de amor quanto o amor não é regido unicamente pelo coração. O sentimento é experimentado pelo corpo todo e, por vezes, são as entranhas que reivindicam a forma como o expressar e trazer à tona pensamentos e reações físicas que nem sempre gostamos de colocar para fora.

É nisso que aposta o escritor sergipano Michel de Oliveira ao se aventurar na poesia em seu novo livro, obra essa que fala de amor com intensidade que vai além de um único órgão do corpo.

Das narrativas curtas aos versos

Michel de Oliveira, jornalista, fotógrafo e escritor nascido em Tobias Barreto (Sergipe), mora em Aracaju. Além de participação em antologias e uma publicação sobre fotografias, é conhecido por seus livros de contos, que carregam um teor por vezes cáustico, por vezes satírico, mas que têm por objetivo atingir o âmago do leitor.

Em seu trabalho de estreia Cólicas, câimbras e outras dores (Oito e Meio, 2017), livro pré-selecionado no Prêmio Sesc de Literatura 2016 e finalista da 1ª Maratona Literária da Editora Oito e Meio/Carreira Literária, Michel narra sobre dores do cotidiano da forma que são sentidas, com desconforto angustiante que mesmo quem não as vivencia pode sentir. Já em O sagrado coração do homem, coletânea de contos finalista do Prêmio Açorianos, publicada pela Moinhos (2018), o autor dá um tom teológico repleto de sarcasmo e ironia ao falar sobre o que há por trás da masculinidade e sua ânsia por superioridade, o que, de certo modo, pode contestar a ideia de sexo frágil.

Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Federal de Sergipe, mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina e doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Michel agora ingressa no cenário da poesia nacional. Apesar da transição das narrativas curtas para os versos, o estilo provocativo e a crueza, constantes na essência de sua escrita, permanecem como marcas registradas que fazem de Michel de Oliveira um dos nomes proeminentes da literatura brasileira contemporânea.

Coisas de amor, que são tantas e tontas

Depois da prosa e da fotografia, Michel de Oliveira apresenta um novo trabalho em um novo estilo: o livro de poesias o amor são tontas coisas.

O amor como centro da obra oscila entre o clichê esperado e a surpresa do sentimento experimentado e nem sempre revelado, desperto em detalhes do cotidiano e vivenciado com intensidade por cada parte do corpo, inclusive aquelas em que menos se espera. Mistura que alterna da leveza ao peso, da melancolia ao êxtase, da delicadeza ao explícito que provoca.

A potência característica da escrita de Michel está impressa em cada verso, levando o sentimento aos sentidos e elevando as sensações a um nível quase visceral. Em sua escrita, o amor se torna palpável e é agarrado nos pequenos detalhes, por mais bobos que sejam, e são tantos.

Permitir-se enxergar o amor em coisas corriqueiras e o descrever no plano físico, associar e distribuir os impulsos aos respectivos órgãos do corpo para que estes manifestem a carga emocional contida, desfazer-se do pudor ao discorrer sobre a paixão com palavras simples que, de tão ordinárias, maximizam o efeito suave esperado dos poemas. São propostas contundentes dos escritos de Michel que tornam o mergulho, no livro e nas sensações, inevitável.

Dividido em duas partes, que podem ser descritas como estágios de reações emocionais e corporais ao sentimento tão almejado por boa parte da humanidade, o livro expõe o furor decorrente do se jogar de cabeça, despido e aberto, ao que o corpo manda depois de ouvir os sussurros do coração. E então resta apenas dar voz às demais partes da anatomia humana atingidas pelo ímpeto do sentir e arcar com as consequências.

Com orelha de Juliana Blasina, o amor são tontas coisas é um dos lançamentos do mês de fevereiro de 2021 da Editora Moinhos, mostrando a faceta poética de um escritor brasileiro que desnuda o profundo (e, muitas vezes, o indizível) do ser humano em palavras certeiras.

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María Zambrano e a Razão Poética

Primeira mulher vencedora do Prêmio Cervantes, pensadora uniu a filosofia e a poesia em um único conceito.

Ao denominar a filosofia como a busca concreta pelo saber, intrínseca ao ser humano, e a poesia como a manifestação transcendental e fluida, aberta à diversidade, utilizada para expressar a realidade, pode-se pensar que ambas as frentes seguem por caminhos opostos, correto? Não exatamente.

Uma pensadora expandiu os horizontes e construiu a ponte que interliga a razão e o mítico. Estamos falando de María Zambrano, escritora e filósofa espanhola que apresentou de forma peculiar um método diferente de pensar filosofia, com um estilo que caminha às margens, porém não foge nem renega as origens.

Mas quem foi María Zambrano?

Nascida em 1904 no município Vélez-Málaga, região da Andaluzia (Espanha), María Zambrano Alarcón foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Miguel de Cervantes em 1988, um dos mais importantes prêmios literários da língua espanhola.

Filha de professores, passou boa parte da infância em Segóvia, antes de partir à capital da Espanha e iniciar seus estudos em filosofia na Universidad Central de Madrid, onde conheceu os mestres José Ortega y Gasset, García Morente, Julián Besteiro e Xavier Zubiri, que se tornariam suas referências – principalmente Ortega y Gasset. Posteriormente, lecionou em algumas instituições, incluindo como substituta de Zubiri em Metafísica na Universidad Central, numa época em que poucas mulheres tinham sequer visibilidade.

Zambrano também contribuiu para alguns periódicos na década de 1930, como a Revista de Occidente, a Cruz y Raya e Hora de España, antes de se exilar por razões políticas durante a Guerra Civil Espanhola, período em que vivenciou os horrores da ditadura por estar do lado dos republicanos.

Durante o exílio, passou por diversos países, inclusive nas Américas, e teve contato com nomes ilustres como Octavio Paz e Albert Camus, retornando à Espanha somente em 1982, onde faleceu no ano de 1991. Esse período também rendeu grande parte da produção de sua obra, entre ensaios filosóficos e literatura, que deu a Zambrano o título de pensadora espanhola mais importante do século XX.

Um conceito onde filosofia e poesia coexistem

Embora seja uma personalidade renomada e digna de reconhecimento, María Zambrano ainda hoje é pouco conhecida fora do circuito acadêmico, quando não é desconhecida dentro no próprio meio. Parte se dá pelo estilo particular da pensadora espanhola ao criar sua linha filosófica que, apesar de beber na fonte clássica da filosofia, mostra divergências à racionalidade tradicional.

A filosofia existencial e, principalmente, o vitalismo são correntes filosóficas integrantes nas referências de Zambrano, mas são os ensinamentos do professor Ortega y Gasset que têm maior influência em seu trabalho, que defende o conceito de raciovitalismo ao dizer que é possível – se não inerente ao ser humano – investigar a vida e as suas circunstâncias estranhas a explicações lógicas utilizando a razão. Afinal, a realidade é um conjunto do saber com o sentir.

É daí que nasce a razão poética, inovadora linha de pensamento de María Zambrano, que difere da de seu mentor Ortega pela sensibilidade e pela possibilidade de reflexão sobre a multiplicidade da vida através do uso da metáfora, característica encontrada na poética e que traça o estilo próprio zambraniano, assim como a essência de suas obras acadêmicas e literárias.

O ser humano carece do saber racional tanto quanto de explicações sobre a história e crenças em manifestações tidas como sobrenaturais. Tal carência encontra na razão poética de Zambrano um meio de se conseguir respostas a questões essenciais, perguntas feitas no âmbito da realidade (filosófico) que encontram compreensão em meio ao caos no âmbito sensitivo e reflexivo (poético). O método reconhece a possibilidade de coexistência entre filosofia e poesia, distintas no conceito, unidas na essência humana.

Com estilo literário acessível aos diversos leitores e linha filosófica que demostra originalidade, María Zambrano reclama através de sua obra a imiscuidade da filosofia e da poesia, rompendo o discurso racional ao introduzir a metaforização em seu método para pensar sobre a vida e a ligação entre o humano e o mítico através da razão poética.

Um de seus principais trabalhos é Filosofia e poesia, livro que teve a primeira edição publicada em 1939. A obra propõe refletir sobre a conciliação entre as duas frentes – filosofia e poesia – através de sua narrativa racional poderosa unida à graciosidade de sua poesia. O livro Filosofia e poesia será um dos lançamentos de 2021 da Editora Moinhos, trazendo ao público brasileiro uma obra rica dessa premiada pensadora, relevante para a filosofia e para a literatura.

Você pode ler um trecho de Filosofia e poesia clicando aqui.

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A história do meu nascimento


Duas frases de duas escritoras me fizeram decidir que era hora de deitar no papel as histórias de minha mãe. A primeira é de Toni Morrison: “se há um livro que você quer ler e ele ainda não existe, escreva-o”. A outra é de Socorro Acioli: “escreva a história que só você pode contar”.

Escutei essas duas sentenças logo quando comecei a estudar Literatura, em março de 2018. E me dei conta do volume de enredos, personagens, memórias e vidas que eu já tinha, tudo dito pela boca de uma mulher de quase 90 anos. E tudo anotadinho, salvo num esconderijo nem tão esconderijo assim chamado Facebook.

Desde que mamãe passou a morar comigo, lá em 2010, a rotina da gente virou cadeira na calçada, palavreado, água nos jardins, cantoria, afazeres domésticos, gargalhadas, amor, cheiro no cangote e um bocado de causo do lugar onde ela nasceu. Uma tal de Jandaíra, vizinho a um tal de Cafundó (que, na verdade, era o endereço do coração dela).

O livro que lancei em março de 2020 nasceu, na verdade, oito anos atrás. No dia em que postei pela primeira vez algo sobre ter, aos 24 anos, mãe e pai morando sob o mesmo teto, o meu teto, pela primeira vez. Lembro bem. Foi como nascer já sendo adulto. Nascer num mundo onde todos os meus amigos haviam nascido quando lhes deram à luz bebês, como é o normal da vida.

Quanto mais eu escrevia sobre as tiradas de mamãe, mais gente se identificava. A velhinha tinha uma língua afiada. Pensamento ligeiro que nem as onças lá do Cafundó da infância dela. E, de repente, minha mãe virou a mãe de um monte de marmanjo e mulher feita. Ao ponto de a gente chamá-la de “velhinha blogueira”, tamanho o sucesso das fotos, vídeos e textos.

Sem ninguém saber, eu guardava as postagens. Anotava muita coisa em caderninhos, botava outro tanto no fundo da memória… Até ouvir as frases de Toni e Socorro, esbarrar em pedidos pra escrever um livro sobre as histórias de minha mãe e a vida me colocar no caminho, como professor, um jornalista que admiro e de quem há anos desejava ser aluno.

Ronaldo Salgado leu cada memória de cada crônica com um zelo tão grande! Respeito ao meu estilo e às histórias que formam mamãe. Produzimos os textos do livro entre fevereiro e maio de 2019. Quatro meses intensos de redação e edição. E e-mails e mensagens de WhatsApp. E inseguranças e medos. E felicidades e certezas.

As 17 histórias foram meu trabalho de conclusão de curso. Tudo escrito enquanto a editoração do material corria em paralelo, porque Ronaldinho queria um protótipo do livro. “É bom pra você ver seu sonho materializado e não desistir dele.” O professor com quem tanto sonhei tinha razão. Foi fundamental pegar aquele projeto de livro.

Tenho ele até hoje. Quando coloco ao lado da versão final, editada pela Moinhos e que tem ganhado o mundo, penso no tanto de minha mãe que tem nele. No tanto de mim que há ali. E no tanto de ficção que precisei dosar pra haver verossimilhança nas crônicas.

Posso dizer que E, no princípio, ela veio: crônicas de memória e amor é um livro gestado há oito anos. Que maturei todo esse tempo sem saber que se tratava de um livro. E que se mostrou pra mim como tal porque Literatura é isso: possibilidade.

Ter lançado minha primeira obra foi como nascer de novo. Porque pra mim, um homem negro, livros nunca foram apresentados como possíveis. Eram apenas objetos. Não lugares. Todas as histórias que li e que me foram contadas ou tinham brancos como protagonistas ou foram escritas por brancos. Ter escritores negros em quem me espelhar foi algo percebido recentemente. Na fala de Toni Morrison, por exemplo, ouvida em 2018.

Agora, com a Literatura compreendida como um lugar de possibilidades, sou eu, um homem negro, nordestino, gay e filho de uma mulher incrível chamada Tereza quem escreve as histórias. As minhas histórias. As histórias de minha mãe. As histórias de todos os personagens que eu desejar. As histórias dos livros que eu gostaria de ler. As histórias que só eu posso contar.

por Bruno de Castro

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Postectomia ou a arte de aparar excessos

Organizar um livro de contos é sempre um desafio. O que vem primeiro? Como estabelecer ordem entre as histórias? Pensar nessa arquitetura narrativa é fundamental para que não seja um compilado aleatório de contos, mas um livro.

NO sagrado coração do homem (Moinhos, 2018), ao escolher trabalhar com releituras e paráfrases dos personagens masculinos da Bíblia, esse grande problema foi sanado. Eu tinha um gabarito prévio: bastava seguir a ordem das Sagradas Escrituras. Essa saída simples, rápida e eficiente garantiu uma coerência interna ao livro e evitou maiores dores de cabeça para encaixar as narrativas.

Mas como escritor sempre busca uma tormenta, inventei de escrever um texto de abertura, que estava fora da ordem bíblica. Era uma espécie de apresentação, intitulada Ladainha de todos os homens, uma reza prévia para situar onde o leitor pisaria. O mantra inicial, a louvação às Musas, ou melhor, aos musos, os homens, essa inspiração central e soberana da sacrossanta literatura.

Estava tudo resolvido, original finalizado, até que em uma noite de insônia, as vozes na cabeça sussurram um texto, intitulado Antes de Deus, mítico, incógnito, do tempo em que éramos quase macacos. Escrevi e gostei do resultado, só que não encaixava em nenhum lugar do livro. Foi quando percebi que era uma boa apresentação e tinha tudo a ver com a proposta.

Os dois textos brigavam por atenção e espaço no livro, ambos queriam a primazia de ser a narrativa inicial. Não soube escolher, tenho a mania de querer aproveitar os textos [se foi escrito que seja lido, coitado], então deixei os dois. E assim encaminhei o arquivo com duas cabeças para a chamada de originais da Moinhos.

O original foi aprovado para publicação, seguiram-se os trâmites todos, até que recebi o arquivo comentado por meu editor, Nathan Matos. Ele fez um apontamento muito simples em uma nota no Word, dizendo que entendia a proposta, mas não sabia se aquele texto era a melhor opção para introduzir o livro.

O rápido comentário foi o suficiente para compreender que o texto estava sobrando. Ao falar de homens, o original sofria de fimose. A ladainha de todos os homens podia até fazer parte, estava no contexto, mas de alguma forma sobrava. Era como se impedisse o livre fluxo do livro. Era uma entrada estreita, pouco convidativa, que podia atrapalhar o intercurso da leitura. A decisão foi simples: cortar, como um boa cirurgia de postectomia.

Aparado o excesso, o conto Antes de Deus pôde se apresentar com toda potência, ganhar espaço e atrair leitores e leitoras de maneira mais sedutora. Um convite para ir devagar, sem tanto alarde, aos poucos, confortável, até que a cadência aumenta e o ritmo fica vigoroso e intenso. Mas aí já é tarde demais. Pelos relatos que recebo, depois que começa tem que ir até o fim. Não sei se o livro penetra em quem lê ou se quem lê penetra no livro. Talvez ambos.

Da experiência de escrever e editar O sagrado coração do homem ficou uma lição: é importante não atrapalhar o intercurso narrativo. Se há excesso: corte-se.

Mas ainda tenho apego pelo excesso extirpado, afinal não é fácil jogar fora um pedaço de si. Por isso reproduzo a seguir, antes que vá para o lixo:

Ladainha de todos os homens

O que homem mais gosta: homem.

Homem, homem de verdade, não esses afrescalhados que escrevem contos, gosta de coisas de homem. Livros escritos por homens, sobre homens; músicas de macho para macho; imagens atléticas, varonis, másculas. Carros tunados, cromados, potentes. Super-herois malhados em justas malhas, para deleite dos olhos sedentos por corpos torneados, ressaltando bem o volume da cueca.

O sonho de todo homem é ter Bukowski bêbado recitando poemas sujos ao pé do ouvido. Ali sim literatura de macho. Deviam até dar outro nome, poesia é fresco demais, coisa de mulherzinhas e baitolas. É preciso nome varonil, para que homens leiam sem agressões à sua frágil estrutura. Que não sejam poetas, mas poeteiros, a escrever poemas eretos, sonetos de bacon e picanha.

Homem de verdade tem coleção particular de machos: jogadores de futebol, pilotos de Fórmula 1, astros do rock, do cinema e heróis de quadrinhos. Também revistas de mulher pelada, mas só para mostrar aos amigos e ver suas caras de prazer.

Homem, de verdade, junta a galera no bar, rodadas de cerveja e MMA no telão, esse sim esporte de macho. Musculosos, entrelaçados, íntimos, realizando o sonho de contato com outro macho, tão desejado quando proibido.

Homem gosta de toque vigoroso: trombada no futebol, agarros no judô, abraço coletivo no vôlei. Homem de verdade odeia balé, bailarino como suporte para bailarina voar, leve, plácida, quase inexistente. Se fosse bailarino segurando vigoroso outro bailarino, aí sim seria coisa de homem. Protagonismo masculino, a supremacia, irmãos.

Homem de verdade fala mal de mulher. Bom mesmo é homem, que não tem frescura, é parceiro, sincero, brother, mano, sem mi mi mi. Homem de verdade gosta de corpo trincado, cheirando a churrasco e cerveja. Suor e urros na academia são afrodisíacos para macho, essência e música masculina.

Homem gosta tanto de homem que fala de mulher para ficar perto de outros homens.

Homem, homem de verdade, gosta de peitoral farto, braços musculosos carregando tora de madeira. Homem gosta é de macho e, quanto mais: melhor. Onze é o número mínimo para a felicidade, multiplicado por dois, com arquibancadas cheias e ainda tantos outros reunidos em frente a TVs high-definition, telas tão grandes quanto seus egos vazios.

Homens na política, homens na economia, homens descontrolados no controle das igrejas e dos lares, homens inseguros a cuidar da segurança. Homens, todos eles, vertigem de homens maravilhosos, irrestritos, machos sem vírgula ponto nem porteira segurem suas cabritas que os bodes estão soltos.

Homens, muitos, em todos os lugares.

Assim na terra como no céu.

Sempre e para sempre.

Amém.

por Michel de Oliveira

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Entrevista com Safa Jubran

Safa, você pode falar, primeiramente, um pouco de você? E, além disso, contar pra gente quando e por quais motivos você começou a traduzir?

Cheguei com quase 20 ao Brasil vindo do Líbano, que ainda estava em guerra quase 20 anos, entrei na USP e continuei meus estudos de onde formei em Letras e depois fiz Mestrado e Doutorado em Linguística, mais especificamente em fonética e fonológica, durante o Mestrado ainda ingressei na USP como docente, onde leciono na área de língua e literatura árabes,  desde 1992, e onde atuo na graduação e, na pós graduação, como orientadora de trabalhos ligados à tradução.

Minha história com a tradução começou bem cedo e por acaso quando acabei ajudando uma professora que pesquisava textos medievais na tradução de manuscrito árabe de alquimia do século 9, demoramos quase 10 anos até a publicação. Comecei pelo mais difícil (traduzir manuscrito árabe da Idade Média), mas essa experiência foi uma escola para mim em todos os sentidos. A partir daí, as oportunidades foram aparecendo e apesar de traduzir vários tipos de textos, inclusive poesia, acabei me dedicando mais aos textos de prosa da literatura árabe moderna, ou contemporânea. É um ofício que gosto, que testa minha paciência e, onde, eu testo meus limites e limitações. 

Safa Jubran

No Brasil, não temos muitas pessoas que possam fazer traduções literárias direto do original árabe, você acha que existe alguma justificativa pra isso?

Não, ao contrário, existem várias pessoas capazes traduzem alguns acabaram se dedicando mais à literatura clássica, outros, mais especificamente à tradução de poesia, como por exemplo, os meus colegas da USP. No momento, há uma geração nova, alguns são ou foram meus alunos e orientandos na USP que pegaram gosto pela coisa estão se arriscando. São pessoas muito capazes e criativas. Acho que logo teremos uma geração de tradutores muito boa. Parece-me também que o mercado editorial atual está demonstrando um interesse maior e, consequentemente, outros nomes acabarão assinando traduções futuras. 

Quais são as maiores dificuldades de se traduzir do árabe para o português?

Embora essa pergunta seja recorrente, eu continuo refletindo muito antes de responder, para não entrar em detalhes muito específicos do ofício. Digamos que os desafios são muitos, a começar pelo imenso universo cultural que abarca o chamado Mundo Árabe, formado por mais de vinte países, estendendo-se ao longo de dois continentes de etnias, confissões, tradições diversas e unificados por uma língua que é a árabe padrão, mas que tem várias manifestações dialetais regionais. Enfim, os desafios se renovam e cada obra de autor, mudam de cara  a cada obra, no sentido  de buscar ou dar conta dos nuances, o que impõe que o tradutor tenha, ao lado do amplo conhecimento dos aspectos culturais,   um entendimento muito profundo das duas línguas, suas coloquialidades e também formas socialmente determinadas, algumas delas, no caso do árabe, exigem sua inclusão no texto traduzido, na forma original, para não correr o risco de cometer reduções no significado, o que pode levar ao apagamento de traços culturais importantes.  

O livro que chega agora ao Brasil, “Damas da lua”, de Jokha Alharthi, vencedor do The Man Booker Internarional Prize, te deu algum trabalho específico, algo em particular que você possa nos dizer?

Sim. Embora a narrativa tenha se utilizado a língua de uma forma simples, clara, singela – e por isso bela- os eventos, principalmente os referentes à formação polícia e social do Omã, exigiu de mim uma pesquisa para melhor compreensão.  As personagens neste romance se expressam em sua maioria por meio de um dialeto típico da região, de sotaque beduíno e que continua vocábulos de uso raro, ainda com relação a esse aspecto, o livro traz muitos provérbios, esses exigiram de mim muita “ginástica” e espero, não ter falhado em transportar a carga cultural e social que os provérbios trazem. Há também inserções de poemas clássicos, de citações religiosas, e de obras pertencentes ao patrimônio cultural árabe islâmico.

Você pode adquirir Damas da Lua em nossa livraria.

Qual a importância de se ter uma obra de uma escritora do Omã publicada no Brasil?

Este livro é importante por vários motivos, primeiro porque é uma belíssima história onde as mulheres são as protagonistas, que foram criadas por Jokha com maestria utilizando-se também de recursos narrativos criativos, tais como: a voz narrativa que alterna entre a terceira pessoa e a primeira, esta de um homem.

Em suma, poucos sabem que existe um país árabe, chamado Omã, que fica no Golfo Árabico, que teve uma história com o tráfico de escravos, e fortes e importantes ligações históricas com o império britânico, que agora é um sultanato, que ao longo de décadas vem se modernizando, que produz um boa literatura, que é escrita em árabe e que tem um escritora como Jokha, mas, que agora graças a Moinhos vão saber disso e poder apreciar mais uma exemplar da literatura árabe que é “Damas da Lua- uma pequeno volume conta uma grande história dos conflitos entre os seres humanos e dentro deles.