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Jokha Alharthi e “Damas da lua”

Quem é Jokha Alharthi?

De forma muito resumida, podemos dizer que ela foi a primeira pessoa do Golfo Pérsico a ganhar o Man Booker International Prize com sua obra “Damas da Lua” (“Celestial Bodies” na tradução para o inglês). Mas além disso, ela é a primeira escritora do Omã a ser traduzida para o inglês e para o português. Aqui no Brasil, a tradução ficou a cargo da premiada tradutora Safa Jubran, que recebeu, em 2019, o Prêmio Sheikh Hamad de Tradução e Entendimento Internacional, pelo trabalho que ela realiza vertendo obras do árabe para o português do Brasil, assim como a sua participação em outras ações em prol da divulgação dos países árabes.

Jokha Alharthi e a tradutora para o inglês Marilyn Booth. Foto: Andy Rain/EPA
(The Guardian)

Jokha Alharthi nasceu em 1948, no Omã, e concluiu seu doutorado em Poesia Clássica Árabe, em Edimburgo. Atualmente ela leciona na Universidade Sultan Qaboos, em Mascate, e possui dez obras publicadas, incluindo três livros de contos, dois livros infantis e três romances em árabe. “Damas da Lua” foi selecionado para o prêmio Sahikh Zayed para jovens escritores e seu romance de 2016, “Narinjah”, ganhou o prêmio Sultan Qaboos de cultura, arte e literatura. Dizem as más línguas que num futuro pós-pandemia essa obra irá pousar por estas paragens. Assim esperamos!

 Alharthi vive em Mascate com seu marido e três filhos. Foto: Alamy (The Guardian)

“Damas da Lua” foi classificado pelo júri do Man Booker Prize como “sutil”, “lírico” e “profundo”. Além disso, diversos jornais internacionais, como New York Times, The Guardian e até a Time, falam sobre a obra, que se passa na vila de al-Awafi, em Omã, onde moram três irmãs. Mayya, a mais velha é a primeira a deixar a casa, se casando com Abdallah – personagem importantíssimo para a narrativa – depois de ter seu coração partido. Assmá, a irmã do meio se casa por um senso de dever. Khawla, a caçula, e para muitos a mais bela, rejeita todas as ofertas enquanto espera por seu amado, que emigrou para o Canadá. O livro que é elegantemente estruturado é sobre a história e as pessoas do Omã moderno contadas através das perdas e amores de uma família. É um livro que conta diversas histórias, possui muitos personagens densos e que emociona com relatos que dizem muito sobre a cultura omanita, sobre o lugar da mulher a solidão que podemos ter dentro de cada um de nós.

Ainda sobre “Damas da lua”, que teve sua primeira edição em 2010, a própria autora diz que é um de “livro de sorte”. Ao The Guardian, ela afirmou que “os livros são como pessoas, alguns têm vidas de sorte, e este livro recebeu muita atenção”. Entre a crítica internacional, o livro ganhou diversos elogios, uma tese de mestrado já foi escrita sobre o assunto e, em 2019, um estudo crítico. Na entrevista que deu ao The Guardian, ela ainda fala sobre um tema que é difícil para o seu povo colocar em discussão, a escravidão, que para os omanitas é algo que ficou no passado, mas que tem espaço dentro dessa narrativa de Alharthi.

Alharthi, ainda na entrevista, quando perguntada como se sentia vendo o livro ganhar novas traduções e, consequentemente, novos leitores e leitoras, ela responde que é estranho, mas que “É maravilhoso ter um número maior de leitores, e ter leitores em todos os lugares”, mas também afirma que é um sentimento estranho porque são personagens que saíram de si e que agora ganham vida no imaginário de outras pessoas. Alharthi ainda fala sobre a relação que pessoas não-árabes podem ter com a obra, ela diz que por existir muito da cultura de Omã, leitores omanistas facilmente se sentem refletidos em seus personagens, o que não acontecerá com pessoas de outras culturas.

No entanto, Alharthi chama atenção para a sequinte questão: “Mas ainda acho que o que nos atrai para a literatura não é aquilo que é familiar, mas sim aquilo com que podemos nos relacionar enquanto algo de valor universal nela”. E, assim como Jokha Alharthi espera que os leitores internacionais possam se relacionar com os valores universais inseridos em “Damas da lua”, nós, da Moinhos, esperamos que você que lê esse texto e que, talvez, venha a conhecer essa obra, possa ter uma das melhores experiências de leitura. A Moinhos está mais do que feliz de ter essa obra em seu catálogo, que você pode adquirir em nossa livraria online ou nas melhores livrarias do Brasil.

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A literatura de Omã e Jokha Alharthi

Jokha Alharthi

Quantos autores de língua árabe você leu nos últimos tempos? E sendo um pouco mais precisa, quantos autores do Omã? Pelas nossas pesquisas, até o momento, nenhum autor ou autora desse país havia sido publicado no Brasil, então é com muita alegria que anunciamos o novo livro de nosso catálogo, “Damas da Lua” de Johka Alharthi. Ficamos muito felizes com essa publicação por diversos motivos, mas principalmente por trazermos uma autora mulher desse país ainda desconhecido para nós e também porque ele foi o ganhador do prêmio literário Man Booker International em maio do ano passado. 

Uma curiosidade sobre o Man Booker International: na história da premiação, apenas seis autores árabes foram indicados, e a Johka Alharthi foi a primeira pessoa do golfo pérsico a ganhar o prêmio. A literatura desses países ainda é muito restrita, com poucas traduções para outras línguas. A importância do prêmio contribui para que outras editoras se interessem pela obra, fazendo ela chegar a leitores do mundo todo. Em breve, vamos escrever mais sobre ela e apresentar melhor a obra, mas antes queríamos conversar sobre a Literatura do Omã

Mesmo nos Estados Unidos, que possui um imenso mercado editorial, há poucas obras do Omã traduzidas, como “Earth Weeps, Saturn Laughs”, de Abdulaziz Al Farsi, e tradução de Nancy Roberts. Outro exemplo é “My Grandmother’s Stories: Folk Tales from Dhofar”, obra transcrita por Khadija bint Alawi al-Dhahab. 

Um dos nomes mais interessantes é Emilie Ruete, nascida em 1844, ela era filha do sultão de Zanzibar e Omã. Em 1867, ela se casou com um alemão chamado Rudolph Heinrich Ruete, e publicou, em 1886, a obra “Memórias de uma Princesa Árabe”. No livro ela descreve suas experiências como uma jovem árabe na cultura e na sociedade de Zanzibar. Num dos capítulos, ela tenta mudar a ideia que o ocidente tinha das mulheres, e conta a história de uma tia-avó que é regente e comandante militar no Omã. 

Outro nome pra vocês conhecerem é Saif al-Rahbi, nascido em 1956, um escritor, ensaísta e escritor omani. Ele estudou no Cairo e viveu em diversos lugares como Paris e Londres. Seu livro “The Bells of Rapture”, de 1985, o transformou num grande nome da poesia árabe. Ele foi um dos jurados do Arabic Booker Prize, em 2010, e atualmente é editor da revista cultural Nizwa. 

Além desse nomes, o jovem Mohammed Alfazari também tem um nome importante na literatura omani. Ele é fundador e editor da revista de notícias Muwatin Media Network. Ele já foi preso diversas vezes por oposição ao governo e possui três obras publicadas, dois romances e um livro de artigos e entrevistas. 

O Omã tem outra escritora importante, Badriyya al-Badri. Ela já publicou três romances e duas coletâneas de poesia. Outros nomes da literatura omani são Zahran al-Qasimi, Sulaiman al Maamari, Bushra Khalfan, Huda Hamed e Azhar Ahmed.

Para quem quer saber mais sobre a literatura desse país, o livro “The Oxford Handbook of Arab Novelistic Traditions”, editado por Waïl S. Hassan, possui um capítulo dedicado aos escritores do Omã.

E agora a Moinhos apresenta aos nossos leitores, “Damas da Lua”, de Johka Alharthi. Semana que vem a gente volta aqui no blog para falar mais dela!

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Natalia Litvinova e seu Cesto de tranças

Um poema que traz um lugar e se faz lugar.

Natalia Litvinova e os poemas de Cesto de tranças são esse olhar atento ao presente que, assim como a neve ou as ondas numa praia que trazem memórias de milhares de anos, segue revivendo as ações de gerações, de sua mãe, sua vó, seu bisavô e também do pai de seu bisavô. São hábitos comuns que não se perdem. São tradições culturais, mas também gestos naturais. Como o voo migratório das aves, as ondas são só outro exemplo da beleza dos dias.

Quando paramos para ver a neve cair, não nos recordamos de seus outros estados no ciclo que a água passa, de onde ela pode ter vindo, por onde correu… Vemos a neve cair como se única, como se brotasse magicamente naquele momento. Ela está diante de nossos olhos pela primeira vez agora, e ali também se escapa, sem pertencimento ou ansiedade.

Não há adoração a esses elementos, nem tampouco medo. A natureza sempre esteve lá, e o que está hoje contém também o que está ausente. Quando se sobrevive a uma catástrofe causada pelo homem, não se teme o que a Natureza deu. Entre búfalos, ursos, cavalos, serpentes, tubérculos, vermes e humanos há uma coabitação e um respeito. É o que sentimos ao ler os versos de Natalia, uma força sentida nas mãos, na carne; sua umidade nos pés, no hálito. O que a poesia de Natalia nos traz é esse corpo e espírito atemporal, da menina que não possui um talismã, mas que carrega consigo todo um bosque e sua aldeia, aquela que se protege da má fortuna como pode, com a superioridade da natureza, com o misticismo ancestral, com a memória. Por isso, são versos de doçura e resistência. ,

Capa do livro Cesto de tranças, livro de poemas de Natalia Litvinova, com um coelho, quase como uma pedra de jade, esculpido, com um fundo laranja.

Cesto de tranças, de Natalia Litvinova, é um delicado poemário de um tempo expandido, onde as referências geográficas se cruzam e se dissolvem, e cada existência humana, cada corpo feminino é mais que um cesto de supertições, memórias e destinos, mas a própria poesia, a vida toda pulsando.

A menina que nos guia e que não a conhecemos, nos mostra uma experiência de estar-sem-estar. Ela canta e a seguimos, desconjurando maldições, ao mesmo tempo aprendendo que as palavras também servem para contar mentiras. Com isso, ela também passa a ser a velha sábia. A voz dos poemas desloca um eu e um você, que às vezes está próximo, e às vezes distante, como se a narradora estivesse sempre nesse movimento de nos levar ao outro lado do mundo, exótico, misterioso e transcendente e nos trazer de volta ao conforto do lar, do que é ordinário e terreno. E por isso, agora, o talismã também é nosso.

***

Quatro meses depois que o reator 4 explodiu em Chernobyl, em 1986, Natalia Litvinona nasceu, em Gómel, na Bielorrússia, cidade que ainda fazia parte da URSS, a duzentos quilômetros de Pripiat, o epicentro da contaminação radioativa. Mas enquanto uma catástrofe de radiação se expandia, apesar das proibições de exposição ao sol e à chuva, a vida seguia, e a pequena Natalia passava sua infância como qualquer criança. Dez anos depois, no entanto, para fugir das doenças e das mortes que não cessavam entre os que haviam decidido ficar, a família Litvinova imigrou e se refugiou na Argentina, onde Natalia se criou poeta, editora e tradutora. Após já quatro livros publicados, em 2017, ganhou o Prêmio estímulo da Fundação Argentina de Poesia, e, no ano seguinte, Natalia Litvinova publicou mais um, o Cesto de Trenzas. Seus livros já foram traduzidos a, ao menos, quatro línguas e suas reedições já chegaram a muitos países, como Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Chile, Colômbia entre outros. Cesto de Tranças, pela editora Moinhos, é sua primeira obra traduzida ao português.

***

Ellen Maria Vasconcellos nasceu em Santos, em 1987, e reside em São Paulo, Brasil. É autora dos livros Chacharitas & gambuzinos (bilíngue, 2015) e Gravidade (2018), ambos publicados pela Ed. Patuá. Também tem poemas e outros textos em antologias e publicações literárias de diversos países.  É tradutora dos livros Ângulo de guinada, de Ben Lerner (e-galáxia, 2015), Minha vida é um limão, de Agustín Arosteguy (Ramalhete, 2016) e Bola de Feno, de Carina Sedevich (Moinhos, 2018). É mestra em literatura hispano-americana pela Universidade de São Paulo e trabalha como editora de livros didáticos de inglês e espanhol. Contato: http://ellenmartins.wixsite.com/home

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Poemas de quarentena, por Laís Ferreira

Poemas de quarentena

Laís Ferreira, em meio ao isolamento que o covid-19 inseriu a sociedade brasileira, buscou na escrita, nos poemas, um alento. Ela nos enviou esses três poemas de quarentena para dividir conosco um pouco de si e do momento que vivemos.

cada espaço vazio

há alguns dias, fazia eu um bolo de maça.
em determinado momento, colocava ainda
(um pouco)
de cravo de canela e de cacau em pó.
fui abrir a caixinha de cacau, no rótulo
estava escrito assim, meio escondido
entre
as possibilidades de se abrir ou se fechar:
‘cada espaço vazio é um espaço para que se tenha algo’.
o susto da frase não veio tanto pela lógica
do que é contido, do que é contem.
o caso é que o vento não sopra onde
não há espaço para que se respire.
hoje, eu penso assim nos espaços vazios
nas ruas
esvaziadas, nas próprias mãos vazias
onde já não é seguro sequer o espaço
tempo de um abraço, um aperto firme
sem espaço entre as palmas. hoje
é como se o vento disesse sutil
(uma vez mais)
a necessidade dos vazios entre
a estrutura dos alvéolos, o vazio
para que um diafragma se preencha
ou se esvazie na força de um ser.
é a beleza mesmo do espaço vazio
de uma folha em branca, a beleza
de se enviar uma carta como vai
a beleza
de um texto de preocupações uma lista
do que é necessário para sobreviver
ou apenas um espaço em branco
para dizer dos tons de todas as cores
quando velozes.
cada espaço vazio parece ser agora
o avesso do que se tem, o som de um peito
rouco.
cada espaço vazio parece ser um espaço
para se ver de longe, o engenho necessário
a essa matéria a pulsar sob a certeza
de toda a vida que resplandece no alto
quando uma única estrela solitária brilha
em qualquer noite de neblina e nuvens.

*

os joelhos fixos em respirar fundo

agora me lembro do que aprendi
em uma aula de fisiologia: a pele
não é dos maiores órgãos do corpo.
se esticássemos a superfície dos pulmões
teríamos um território próximo à área
de meio campo de futebol. agora
penso no que pode ser a natureza
de um pulmão doente, as cidades
possíveis de serem guardadas
dentro de um perímetro do espaço,
o terreno
onde cresça uma árvore brônquica.
agora, se sabe de um pulmão o tempo
impreciso de um toque, o elo
entre o ar que nela penetra e o calor
de duas mãos dadas, a firmeza
dos dedos que se apertam em confiança.
um pulmão guarda em si a possibilidade
de uma partilha invisível, este ar
mais penetrante que qualquer gesto,
uma pele
não circunscrita aos membros. raia
outra vez esse dia: é um sopro morno,
a esperança
tem os joelhos fixos em respirar fundo.

*

as cordas desta aurora

aqui se sabe de nossa voz
o tom
pela forma como nascem
nossas pregas vocais
as cordas
entre um lado e o outro.
é preciso assim espaço
vazio
entre dois lados, é ainda
necessário um vão entre
o que absorvemos,
o que emitimos do lado
de fora de nós. hoje,
este ar que nos penetra
vigila
uma carta à distância,
uma prece por quem
o rosto já não vemos.
com o peito insuflado,
sabemos que o mar
não navega em linha reta:
são estas as ilhas celestes
de uma flor que nasce
ainda
em bronquíolos em sigilo.

*

Por Laís Ferreira, autora do livro de poemas “Ao norte, ao chão”.

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Enfim, 2020

Antes de mais nada, enfim, 2020

Para o mercado editorial, o ano sempre começa a acontecer depois do carnaval, ali mais ou menos pelo mês de março e vai até meados de novembro, quando os últimos pedidos são feitos pelas livrarias; as pessoas mais veteranas do mercado dizem que não adianta disputar com o Natal. No entanto, o que se vê são algumas pequenas editoras brasileiras, as chamadas independentes, sem ouvir muito esse conselho. Começamos janeiro já com lançamentos e vamos até onde for possível, se duvidar lançamos livros até mesmo com o Papai Noel do lado, vai que ele traz público!

No entanto, 2020 parece ser um ano daqueles que traz o peso de muitas definições, que vai além dos rumos que os municípios do país irão tomar. 2020 começa como um ano em que o mercado está a sofrer com cancelamentos de feiras internacionais devido ao coronavírus. Além disso, 2020 poderá definir alguns novos caminhos no Brasil, no mercado livreiro principalmente; apesar dos recentes problemas no setor, livrarias de rua estão sendo abertas, o que por si só é um alento para algumas almas. Sabemos que isso não salva o mercado, mas nos enche de alegria ver uma livraria nascer e nos dá um pouco de energia para continuar publicando.

Todavia, ao lado dessas mudanças, e dessas notícias, uma em especial nos agrada. A Moinhos irá completar 4 anos em breve (no mês de maio) e é importante olhar para trás e entender o que nos trouxe até aqui, pensar nos passos que demos e nos que daremos durante os próximos meses. E sabemos que o que está por vir pode interessar muito a vocês.

Esse editorial serve, portanto, para darmos boas-vindas ao ano de 2020 e a todas e todos vocês que vêm nos acompanhando desde que publicamos nosso primeiro livro. A Editora Moinhos cresceu e tem conquistado o seu pequeno espaço na prateleira das leitoras e leitores do país, e, por mais clichê que possa parecer, nós nos sentimos honrados e cheios de orgulho porque vocês acreditam em nossas autoras e em nossos autores.

Temos um objetivo em comum, enfim, compartilhar leituras.

Assim, as nossas leituras, vocês sabem, estarão sempre preenchidas por poesia, mas, em 2020, ficará um pouco mais claro o nosso desejo: ser uma das pequenas casas editoriais onde o coração da América Latina possa estar. Este ano, iremos publicar obras brasileiras, chilenas, colombianas e argentinas dos mais diversos gêneros, a poesia será apenas um deles. A ideia é nos sentirmos mais latinos, mais próximos não apenas da literatura de países vizinhos, mas nos sentirmos mais irmanados aos problemas sociais que envolvem a nuestra América Latina. Por isso, desejamos que, mesmo em meio a tantos desvarios, possamos continuar #juntospelolivro, pela literatura e pela leitura.

Enfim, bons ventos nos guiem.

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Moda & Literatura, por Geanneti Tavares

Todas as pessoas servem-se da moda, sem distinção de sexo, idade, classe, convicção política ou religiosa, entre outras coisas, desejando ou não. Mesmo alguém que sente um desejo iminente de protestar ao ler essa afirmativa. A moda é um fenômeno básico das sociedades modernas, e não somente das capitalistas. Nestas últimas, ele é óbvio, escancarado, e é uma espécie de lenitivo para apaziguar outras dores, mesmo aquelas que o próprio sujeito ignora em si.

Desde a pré-história, o ser humano desejou se adornar. E se não for esse um motivo satisfatório e convincente para justificar o uso de peças vestimentares (englobo aí roupas e acessórios) precisou e precisa proteger seu corpo; e se ainda não for por esses motivos, sentiu e sente vergonha de mostrar determinadas partes do corpo; e ainda mais um, sente necessidade de “desenhar” sua imagem pública e mostrar sua personalidade por meio dos objetos com que se constrói. Ler A psicologia das roupas, de John Flügel, pode ampliar essas ideias.

O que é a moda então? Pode ser várias coisas: forma de expressão individual de subjetividade; forma de identificar determinados grupos por meio de semelhanças e diferenças, afinidades e aversões; forma de oprimir e dominar grupos; forma de manipulação e adormecimento das massas. Mas é fruto do desejo humano de compreender a si e ao mundo, de nomear, classificar, ilustrar, coisas e a si mesmo; é um desejo de cultura.

No pensamento de Roland Barthes, uma distinção entre os tipos de moda: Moda, no sentido de fashion, e uma moda, esta última no sentido mais material, de modismos passageiros. Claro que estão vinculadas e uma depende da outra para existir, e há muitas nuances nessa definição que não cabem aqui nesse curto texto, feito para trazer curiosidade sobre o entrelace entre a moda e a literatura. Essa distinção nos ajuda a compreender como, por meio da engrenagem do novo (que é mixado com o antigo), a moda se mantém. E hoje ela paga o preço da pressa, pois, ao acelerar seu sistema com o fastfashion, vem sentindo o desgaste em sua própria capacidade de inovar (mas isso é outro assunto).

Tudo isso é matéria para o escritor. A moda é parte de um “fio social” – para usar uma expressão de Antonio Candido ao associar a escrita machadiana aos salões e rumores da sociedade de sua época (século XIX). Não por acaso, Machado possui narrativas baseadas nas conexões sociais por meio da moda.

Há uma exigência social e cultural no indivíduo, interna e externa, que faz da moda um demarcador do tempo. Por meio da imagem de moda, podemos saber muito do contexto geral de uma época. O que se altera na sociedade irá refletir na imagem das pessoas e a imagem das pessoas alterará os sentidos da sociedade, e isso tudo está expresso na cultura, na arte, nas micropolíticas, nos artefatos que produzimos.

É um movimento circular. Foi o que Baudelaire (O pintor da vida moderna) quis dizer quando explicou que ao olhar gravuras de moda sentia “um encanto de dupla natureza: artística e histórica”. Por meio dos desenhos que via, era possível observar “a moral e a estética de uma época”. Obviamente se referia ao sentido filosófico de moral, que diz respeito ao conjunto de regras estabelecidas por uma sociedade que são adquiridas por meio da cultura, os costumes de um povo, mas que também serve para analisar outros aspectos da moral. A moda é manifestação de pensamentos conscientes e inconscientes e os torna reais.

A imagem de moda, no texto ficcional, é capaz de materializar o pensamento do leitor, torna o texto lido mais próximo, a personagem mais verossimilhante. A imagem é capaz de evocar as coisas pensadas, lidas, vistas, os cheiros, os gostos, calores e volatiliza tudo em sensações e emoções. Ela conecta mundos aparentemente distantes, como a moda e a literatura.

Por meio da imagem de moda elaborada criativamente em palavras no texto ficcional, que depois se tornarão novamente imagem na mente do leitor, é que nasce essa relação. Na literatura, a moda surge como estratégia criativa de escrita para realizar imagens na mente do leitor, seja de ordem histórica, estética ou tática.

Quando são de ordem histórica, contam detalhes de uma época, contextualizam, evocam e guardam memórias. Quando são de ordem estética, encantam, emocionam e arrebatam. Quando são de ordem tática, têm função estratégica, de controle, como quando Machado de Assis apresenta um descritivo quase vazio de imagens no aspecto vestimentar dos gêmeos Esaú e Jacob para não expor o argumento de sua narrativa; ou quando descreve Capitu de forma incongruente para manter as dúvidas do leitor sobre sua honestidade ou dissimulação. E todas essas camadas podem ocorrer em uma mesma obra, a depender da habilidade do escritor.