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Postectomia ou a arte de aparar excessos

Organizar um livro de contos é sempre um desafio. O que vem primeiro? Como estabelecer ordem entre as histórias? Pensar nessa arquitetura narrativa é fundamental para que não seja um compilado aleatório de contos, mas um livro.

NO sagrado coração do homem (Moinhos, 2018), ao escolher trabalhar com releituras e paráfrases dos personagens masculinos da Bíblia, esse grande problema foi sanado. Eu tinha um gabarito prévio: bastava seguir a ordem das Sagradas Escrituras. Essa saída simples, rápida e eficiente garantiu uma coerência interna ao livro e evitou maiores dores de cabeça para encaixar as narrativas.

Mas como escritor sempre busca uma tormenta, inventei de escrever um texto de abertura, que estava fora da ordem bíblica. Era uma espécie de apresentação, intitulada Ladainha de todos os homens, uma reza prévia para situar onde o leitor pisaria. O mantra inicial, a louvação às Musas, ou melhor, aos musos, os homens, essa inspiração central e soberana da sacrossanta literatura.

Estava tudo resolvido, original finalizado, até que em uma noite de insônia, as vozes na cabeça sussurram um texto, intitulado Antes de Deus, mítico, incógnito, do tempo em que éramos quase macacos. Escrevi e gostei do resultado, só que não encaixava em nenhum lugar do livro. Foi quando percebi que era uma boa apresentação e tinha tudo a ver com a proposta.

Os dois textos brigavam por atenção e espaço no livro, ambos queriam a primazia de ser a narrativa inicial. Não soube escolher, tenho a mania de querer aproveitar os textos [se foi escrito que seja lido, coitado], então deixei os dois. E assim encaminhei o arquivo com duas cabeças para a chamada de originais da Moinhos.

O original foi aprovado para publicação, seguiram-se os trâmites todos, até que recebi o arquivo comentado por meu editor, Nathan Matos. Ele fez um apontamento muito simples em uma nota no Word, dizendo que entendia a proposta, mas não sabia se aquele texto era a melhor opção para introduzir o livro.

O rápido comentário foi o suficiente para compreender que o texto estava sobrando. Ao falar de homens, o original sofria de fimose. A ladainha de todos os homens podia até fazer parte, estava no contexto, mas de alguma forma sobrava. Era como se impedisse o livre fluxo do livro. Era uma entrada estreita, pouco convidativa, que podia atrapalhar o intercurso da leitura. A decisão foi simples: cortar, como um boa cirurgia de postectomia.

Aparado o excesso, o conto Antes de Deus pôde se apresentar com toda potência, ganhar espaço e atrair leitores e leitoras de maneira mais sedutora. Um convite para ir devagar, sem tanto alarde, aos poucos, confortável, até que a cadência aumenta e o ritmo fica vigoroso e intenso. Mas aí já é tarde demais. Pelos relatos que recebo, depois que começa tem que ir até o fim. Não sei se o livro penetra em quem lê ou se quem lê penetra no livro. Talvez ambos.

Da experiência de escrever e editar O sagrado coração do homem ficou uma lição: é importante não atrapalhar o intercurso narrativo. Se há excesso: corte-se.

Mas ainda tenho apego pelo excesso extirpado, afinal não é fácil jogar fora um pedaço de si. Por isso reproduzo a seguir, antes que vá para o lixo:

Ladainha de todos os homens

O que homem mais gosta: homem.

Homem, homem de verdade, não esses afrescalhados que escrevem contos, gosta de coisas de homem. Livros escritos por homens, sobre homens; músicas de macho para macho; imagens atléticas, varonis, másculas. Carros tunados, cromados, potentes. Super-herois malhados em justas malhas, para deleite dos olhos sedentos por corpos torneados, ressaltando bem o volume da cueca.

O sonho de todo homem é ter Bukowski bêbado recitando poemas sujos ao pé do ouvido. Ali sim literatura de macho. Deviam até dar outro nome, poesia é fresco demais, coisa de mulherzinhas e baitolas. É preciso nome varonil, para que homens leiam sem agressões à sua frágil estrutura. Que não sejam poetas, mas poeteiros, a escrever poemas eretos, sonetos de bacon e picanha.

Homem de verdade tem coleção particular de machos: jogadores de futebol, pilotos de Fórmula 1, astros do rock, do cinema e heróis de quadrinhos. Também revistas de mulher pelada, mas só para mostrar aos amigos e ver suas caras de prazer.

Homem, de verdade, junta a galera no bar, rodadas de cerveja e MMA no telão, esse sim esporte de macho. Musculosos, entrelaçados, íntimos, realizando o sonho de contato com outro macho, tão desejado quando proibido.

Homem gosta de toque vigoroso: trombada no futebol, agarros no judô, abraço coletivo no vôlei. Homem de verdade odeia balé, bailarino como suporte para bailarina voar, leve, plácida, quase inexistente. Se fosse bailarino segurando vigoroso outro bailarino, aí sim seria coisa de homem. Protagonismo masculino, a supremacia, irmãos.

Homem de verdade fala mal de mulher. Bom mesmo é homem, que não tem frescura, é parceiro, sincero, brother, mano, sem mi mi mi. Homem de verdade gosta de corpo trincado, cheirando a churrasco e cerveja. Suor e urros na academia são afrodisíacos para macho, essência e música masculina.

Homem gosta tanto de homem que fala de mulher para ficar perto de outros homens.

Homem, homem de verdade, gosta de peitoral farto, braços musculosos carregando tora de madeira. Homem gosta é de macho e, quanto mais: melhor. Onze é o número mínimo para a felicidade, multiplicado por dois, com arquibancadas cheias e ainda tantos outros reunidos em frente a TVs high-definition, telas tão grandes quanto seus egos vazios.

Homens na política, homens na economia, homens descontrolados no controle das igrejas e dos lares, homens inseguros a cuidar da segurança. Homens, todos eles, vertigem de homens maravilhosos, irrestritos, machos sem vírgula ponto nem porteira segurem suas cabritas que os bodes estão soltos.

Homens, muitos, em todos os lugares.

Assim na terra como no céu.

Sempre e para sempre.

Amém.

por Michel de Oliveira

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Entrevista com Safa Jubran

Safa, você pode falar, primeiramente, um pouco de você? E, além disso, contar pra gente quando e por quais motivos você começou a traduzir?

Cheguei com quase 20 ao Brasil vindo do Líbano, que ainda estava em guerra quase 20 anos, entrei na USP e continuei meus estudos de onde formei em Letras e depois fiz Mestrado e Doutorado em Linguística, mais especificamente em fonética e fonológica, durante o Mestrado ainda ingressei na USP como docente, onde leciono na área de língua e literatura árabes,  desde 1992, e onde atuo na graduação e, na pós graduação, como orientadora de trabalhos ligados à tradução.

Minha história com a tradução começou bem cedo e por acaso quando acabei ajudando uma professora que pesquisava textos medievais na tradução de manuscrito árabe de alquimia do século 9, demoramos quase 10 anos até a publicação. Comecei pelo mais difícil (traduzir manuscrito árabe da Idade Média), mas essa experiência foi uma escola para mim em todos os sentidos. A partir daí, as oportunidades foram aparecendo e apesar de traduzir vários tipos de textos, inclusive poesia, acabei me dedicando mais aos textos de prosa da literatura árabe moderna, ou contemporânea. É um ofício que gosto, que testa minha paciência e, onde, eu testo meus limites e limitações. 

Safa Jubran

No Brasil, não temos muitas pessoas que possam fazer traduções literárias direto do original árabe, você acha que existe alguma justificativa pra isso?

Não, ao contrário, existem várias pessoas capazes traduzem alguns acabaram se dedicando mais à literatura clássica, outros, mais especificamente à tradução de poesia, como por exemplo, os meus colegas da USP. No momento, há uma geração nova, alguns são ou foram meus alunos e orientandos na USP que pegaram gosto pela coisa estão se arriscando. São pessoas muito capazes e criativas. Acho que logo teremos uma geração de tradutores muito boa. Parece-me também que o mercado editorial atual está demonstrando um interesse maior e, consequentemente, outros nomes acabarão assinando traduções futuras. 

Quais são as maiores dificuldades de se traduzir do árabe para o português?

Embora essa pergunta seja recorrente, eu continuo refletindo muito antes de responder, para não entrar em detalhes muito específicos do ofício. Digamos que os desafios são muitos, a começar pelo imenso universo cultural que abarca o chamado Mundo Árabe, formado por mais de vinte países, estendendo-se ao longo de dois continentes de etnias, confissões, tradições diversas e unificados por uma língua que é a árabe padrão, mas que tem várias manifestações dialetais regionais. Enfim, os desafios se renovam e cada obra de autor, mudam de cara  a cada obra, no sentido  de buscar ou dar conta dos nuances, o que impõe que o tradutor tenha, ao lado do amplo conhecimento dos aspectos culturais,   um entendimento muito profundo das duas línguas, suas coloquialidades e também formas socialmente determinadas, algumas delas, no caso do árabe, exigem sua inclusão no texto traduzido, na forma original, para não correr o risco de cometer reduções no significado, o que pode levar ao apagamento de traços culturais importantes.  

O livro que chega agora ao Brasil, “Damas da lua”, de Jokha Alharthi, vencedor do The Man Booker Internarional Prize, te deu algum trabalho específico, algo em particular que você possa nos dizer?

Sim. Embora a narrativa tenha se utilizado a língua de uma forma simples, clara, singela – e por isso bela- os eventos, principalmente os referentes à formação polícia e social do Omã, exigiu de mim uma pesquisa para melhor compreensão.  As personagens neste romance se expressam em sua maioria por meio de um dialeto típico da região, de sotaque beduíno e que continua vocábulos de uso raro, ainda com relação a esse aspecto, o livro traz muitos provérbios, esses exigiram de mim muita “ginástica” e espero, não ter falhado em transportar a carga cultural e social que os provérbios trazem. Há também inserções de poemas clássicos, de citações religiosas, e de obras pertencentes ao patrimônio cultural árabe islâmico.

Você pode adquirir Damas da Lua em nossa livraria.

Qual a importância de se ter uma obra de uma escritora do Omã publicada no Brasil?

Este livro é importante por vários motivos, primeiro porque é uma belíssima história onde as mulheres são as protagonistas, que foram criadas por Jokha com maestria utilizando-se também de recursos narrativos criativos, tais como: a voz narrativa que alterna entre a terceira pessoa e a primeira, esta de um homem.

Em suma, poucos sabem que existe um país árabe, chamado Omã, que fica no Golfo Árabico, que teve uma história com o tráfico de escravos, e fortes e importantes ligações históricas com o império britânico, que agora é um sultanato, que ao longo de décadas vem se modernizando, que produz um boa literatura, que é escrita em árabe e que tem um escritora como Jokha, mas, que agora graças a Moinhos vão saber disso e poder apreciar mais uma exemplar da literatura árabe que é “Damas da Lua- uma pequeno volume conta uma grande história dos conflitos entre os seres humanos e dentro deles.

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Jokha Alharthi e “Damas da lua”

Quem é Jokha Alharthi?

De forma muito resumida, podemos dizer que ela foi a primeira pessoa do Golfo Pérsico a ganhar o Man Booker International Prize com sua obra “Damas da Lua” (“Celestial Bodies” na tradução para o inglês). Mas além disso, ela é a primeira escritora do Omã a ser traduzida para o inglês e para o português. Aqui no Brasil, a tradução ficou a cargo da premiada tradutora Safa Jubran, que recebeu, em 2019, o Prêmio Sheikh Hamad de Tradução e Entendimento Internacional, pelo trabalho que ela realiza vertendo obras do árabe para o português do Brasil, assim como a sua participação em outras ações em prol da divulgação dos países árabes.

Jokha Alharthi e a tradutora para o inglês Marilyn Booth. Foto: Andy Rain/EPA
(The Guardian)

Jokha Alharthi nasceu em 1948, no Omã, e concluiu seu doutorado em Poesia Clássica Árabe, em Edimburgo. Atualmente ela leciona na Universidade Sultan Qaboos, em Mascate, e possui dez obras publicadas, incluindo três livros de contos, dois livros infantis e três romances em árabe. “Damas da Lua” foi selecionado para o prêmio Sahikh Zayed para jovens escritores e seu romance de 2016, “Narinjah”, ganhou o prêmio Sultan Qaboos de cultura, arte e literatura. Dizem as más línguas que num futuro pós-pandemia essa obra irá pousar por estas paragens. Assim esperamos!

 Alharthi vive em Mascate com seu marido e três filhos. Foto: Alamy (The Guardian)

“Damas da Lua” foi classificado pelo júri do Man Booker Prize como “sutil”, “lírico” e “profundo”. Além disso, diversos jornais internacionais, como New York Times, The Guardian e até a Time, falam sobre a obra, que se passa na vila de al-Awafi, em Omã, onde moram três irmãs. Mayya, a mais velha é a primeira a deixar a casa, se casando com Abdallah – personagem importantíssimo para a narrativa – depois de ter seu coração partido. Assmá, a irmã do meio se casa por um senso de dever. Khawla, a caçula, e para muitos a mais bela, rejeita todas as ofertas enquanto espera por seu amado, que emigrou para o Canadá. O livro que é elegantemente estruturado é sobre a história e as pessoas do Omã moderno contadas através das perdas e amores de uma família. É um livro que conta diversas histórias, possui muitos personagens densos e que emociona com relatos que dizem muito sobre a cultura omanita, sobre o lugar da mulher a solidão que podemos ter dentro de cada um de nós.

Ainda sobre “Damas da lua”, que teve sua primeira edição em 2010, a própria autora diz que é um de “livro de sorte”. Ao The Guardian, ela afirmou que “os livros são como pessoas, alguns têm vidas de sorte, e este livro recebeu muita atenção”. Entre a crítica internacional, o livro ganhou diversos elogios, uma tese de mestrado já foi escrita sobre o assunto e, em 2019, um estudo crítico. Na entrevista que deu ao The Guardian, ela ainda fala sobre um tema que é difícil para o seu povo colocar em discussão, a escravidão, que para os omanitas é algo que ficou no passado, mas que tem espaço dentro dessa narrativa de Alharthi.

Alharthi, ainda na entrevista, quando perguntada como se sentia vendo o livro ganhar novas traduções e, consequentemente, novos leitores e leitoras, ela responde que é estranho, mas que “É maravilhoso ter um número maior de leitores, e ter leitores em todos os lugares”, mas também afirma que é um sentimento estranho porque são personagens que saíram de si e que agora ganham vida no imaginário de outras pessoas. Alharthi ainda fala sobre a relação que pessoas não-árabes podem ter com a obra, ela diz que por existir muito da cultura de Omã, leitores omanistas facilmente se sentem refletidos em seus personagens, o que não acontecerá com pessoas de outras culturas.

No entanto, Alharthi chama atenção para a sequinte questão: “Mas ainda acho que o que nos atrai para a literatura não é aquilo que é familiar, mas sim aquilo com que podemos nos relacionar enquanto algo de valor universal nela”. E, assim como Jokha Alharthi espera que os leitores internacionais possam se relacionar com os valores universais inseridos em “Damas da lua”, nós, da Moinhos, esperamos que você que lê esse texto e que, talvez, venha a conhecer essa obra, possa ter uma das melhores experiências de leitura. A Moinhos está mais do que feliz de ter essa obra em seu catálogo, que você pode adquirir em nossa livraria online ou nas melhores livrarias do Brasil.

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A literatura de Omã e Jokha Alharthi

Jokha Alharthi

Quantos autores de língua árabe você leu nos últimos tempos? E sendo um pouco mais precisa, quantos autores do Omã? Pelas nossas pesquisas, até o momento, nenhum autor ou autora desse país havia sido publicado no Brasil, então é com muita alegria que anunciamos o novo livro de nosso catálogo, “Damas da Lua” de Johka Alharthi. Ficamos muito felizes com essa publicação por diversos motivos, mas principalmente por trazermos uma autora mulher desse país ainda desconhecido para nós e também porque ele foi o ganhador do prêmio literário Man Booker International em maio do ano passado. 

Uma curiosidade sobre o Man Booker International: na história da premiação, apenas seis autores árabes foram indicados, e a Johka Alharthi foi a primeira pessoa do golfo pérsico a ganhar o prêmio. A literatura desses países ainda é muito restrita, com poucas traduções para outras línguas. A importância do prêmio contribui para que outras editoras se interessem pela obra, fazendo ela chegar a leitores do mundo todo. Em breve, vamos escrever mais sobre ela e apresentar melhor a obra, mas antes queríamos conversar sobre a Literatura do Omã

Mesmo nos Estados Unidos, que possui um imenso mercado editorial, há poucas obras do Omã traduzidas, como “Earth Weeps, Saturn Laughs”, de Abdulaziz Al Farsi, e tradução de Nancy Roberts. Outro exemplo é “My Grandmother’s Stories: Folk Tales from Dhofar”, obra transcrita por Khadija bint Alawi al-Dhahab. 

Um dos nomes mais interessantes é Emilie Ruete, nascida em 1844, ela era filha do sultão de Zanzibar e Omã. Em 1867, ela se casou com um alemão chamado Rudolph Heinrich Ruete, e publicou, em 1886, a obra “Memórias de uma Princesa Árabe”. No livro ela descreve suas experiências como uma jovem árabe na cultura e na sociedade de Zanzibar. Num dos capítulos, ela tenta mudar a ideia que o ocidente tinha das mulheres, e conta a história de uma tia-avó que é regente e comandante militar no Omã. 

Outro nome pra vocês conhecerem é Saif al-Rahbi, nascido em 1956, um escritor, ensaísta e escritor omani. Ele estudou no Cairo e viveu em diversos lugares como Paris e Londres. Seu livro “The Bells of Rapture”, de 1985, o transformou num grande nome da poesia árabe. Ele foi um dos jurados do Arabic Booker Prize, em 2010, e atualmente é editor da revista cultural Nizwa. 

Além desse nomes, o jovem Mohammed Alfazari também tem um nome importante na literatura omani. Ele é fundador e editor da revista de notícias Muwatin Media Network. Ele já foi preso diversas vezes por oposição ao governo e possui três obras publicadas, dois romances e um livro de artigos e entrevistas. 

O Omã tem outra escritora importante, Badriyya al-Badri. Ela já publicou três romances e duas coletâneas de poesia. Outros nomes da literatura omani são Zahran al-Qasimi, Sulaiman al Maamari, Bushra Khalfan, Huda Hamed e Azhar Ahmed.

Para quem quer saber mais sobre a literatura desse país, o livro “The Oxford Handbook of Arab Novelistic Traditions”, editado por Waïl S. Hassan, possui um capítulo dedicado aos escritores do Omã.

E agora a Moinhos apresenta aos nossos leitores, “Damas da Lua”, de Johka Alharthi. Semana que vem a gente volta aqui no blog para falar mais dela!

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Natalia Litvinova e seu Cesto de tranças

Um poema que traz um lugar e se faz lugar.

Natalia Litvinova e os poemas de Cesto de tranças são esse olhar atento ao presente que, assim como a neve ou as ondas numa praia que trazem memórias de milhares de anos, segue revivendo as ações de gerações, de sua mãe, sua vó, seu bisavô e também do pai de seu bisavô. São hábitos comuns que não se perdem. São tradições culturais, mas também gestos naturais. Como o voo migratório das aves, as ondas são só outro exemplo da beleza dos dias.

Quando paramos para ver a neve cair, não nos recordamos de seus outros estados no ciclo que a água passa, de onde ela pode ter vindo, por onde correu… Vemos a neve cair como se única, como se brotasse magicamente naquele momento. Ela está diante de nossos olhos pela primeira vez agora, e ali também se escapa, sem pertencimento ou ansiedade.

Não há adoração a esses elementos, nem tampouco medo. A natureza sempre esteve lá, e o que está hoje contém também o que está ausente. Quando se sobrevive a uma catástrofe causada pelo homem, não se teme o que a Natureza deu. Entre búfalos, ursos, cavalos, serpentes, tubérculos, vermes e humanos há uma coabitação e um respeito. É o que sentimos ao ler os versos de Natalia, uma força sentida nas mãos, na carne; sua umidade nos pés, no hálito. O que a poesia de Natalia nos traz é esse corpo e espírito atemporal, da menina que não possui um talismã, mas que carrega consigo todo um bosque e sua aldeia, aquela que se protege da má fortuna como pode, com a superioridade da natureza, com o misticismo ancestral, com a memória. Por isso, são versos de doçura e resistência. ,

Capa do livro Cesto de tranças, livro de poemas de Natalia Litvinova, com um coelho, quase como uma pedra de jade, esculpido, com um fundo laranja.

Cesto de tranças, de Natalia Litvinova, é um delicado poemário de um tempo expandido, onde as referências geográficas se cruzam e se dissolvem, e cada existência humana, cada corpo feminino é mais que um cesto de supertições, memórias e destinos, mas a própria poesia, a vida toda pulsando.

A menina que nos guia e que não a conhecemos, nos mostra uma experiência de estar-sem-estar. Ela canta e a seguimos, desconjurando maldições, ao mesmo tempo aprendendo que as palavras também servem para contar mentiras. Com isso, ela também passa a ser a velha sábia. A voz dos poemas desloca um eu e um você, que às vezes está próximo, e às vezes distante, como se a narradora estivesse sempre nesse movimento de nos levar ao outro lado do mundo, exótico, misterioso e transcendente e nos trazer de volta ao conforto do lar, do que é ordinário e terreno. E por isso, agora, o talismã também é nosso.

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Quatro meses depois que o reator 4 explodiu em Chernobyl, em 1986, Natalia Litvinona nasceu, em Gómel, na Bielorrússia, cidade que ainda fazia parte da URSS, a duzentos quilômetros de Pripiat, o epicentro da contaminação radioativa. Mas enquanto uma catástrofe de radiação se expandia, apesar das proibições de exposição ao sol e à chuva, a vida seguia, e a pequena Natalia passava sua infância como qualquer criança. Dez anos depois, no entanto, para fugir das doenças e das mortes que não cessavam entre os que haviam decidido ficar, a família Litvinova imigrou e se refugiou na Argentina, onde Natalia se criou poeta, editora e tradutora. Após já quatro livros publicados, em 2017, ganhou o Prêmio estímulo da Fundação Argentina de Poesia, e, no ano seguinte, Natalia Litvinova publicou mais um, o Cesto de Trenzas. Seus livros já foram traduzidos a, ao menos, quatro línguas e suas reedições já chegaram a muitos países, como Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Chile, Colômbia entre outros. Cesto de Tranças, pela editora Moinhos, é sua primeira obra traduzida ao português.

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Ellen Maria Vasconcellos nasceu em Santos, em 1987, e reside em São Paulo, Brasil. É autora dos livros Chacharitas & gambuzinos (bilíngue, 2015) e Gravidade (2018), ambos publicados pela Ed. Patuá. Também tem poemas e outros textos em antologias e publicações literárias de diversos países.  É tradutora dos livros Ângulo de guinada, de Ben Lerner (e-galáxia, 2015), Minha vida é um limão, de Agustín Arosteguy (Ramalhete, 2016) e Bola de Feno, de Carina Sedevich (Moinhos, 2018). É mestra em literatura hispano-americana pela Universidade de São Paulo e trabalha como editora de livros didáticos de inglês e espanhol. Contato: http://ellenmartins.wixsite.com/home

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Moda & Literatura, por Geanneti Tavares

Todas as pessoas servem-se da moda, sem distinção de sexo, idade, classe, convicção política ou religiosa, entre outras coisas, desejando ou não. Mesmo alguém que sente um desejo iminente de protestar ao ler essa afirmativa. A moda é um fenômeno básico das sociedades modernas, e não somente das capitalistas. Nestas últimas, ele é óbvio, escancarado, e é uma espécie de lenitivo para apaziguar outras dores, mesmo aquelas que o próprio sujeito ignora em si.

Desde a pré-história, o ser humano desejou se adornar. E se não for esse um motivo satisfatório e convincente para justificar o uso de peças vestimentares (englobo aí roupas e acessórios) precisou e precisa proteger seu corpo; e se ainda não for por esses motivos, sentiu e sente vergonha de mostrar determinadas partes do corpo; e ainda mais um, sente necessidade de “desenhar” sua imagem pública e mostrar sua personalidade por meio dos objetos com que se constrói. Ler A psicologia das roupas, de John Flügel, pode ampliar essas ideias.

O que é a moda então? Pode ser várias coisas: forma de expressão individual de subjetividade; forma de identificar determinados grupos por meio de semelhanças e diferenças, afinidades e aversões; forma de oprimir e dominar grupos; forma de manipulação e adormecimento das massas. Mas é fruto do desejo humano de compreender a si e ao mundo, de nomear, classificar, ilustrar, coisas e a si mesmo; é um desejo de cultura.

No pensamento de Roland Barthes, uma distinção entre os tipos de moda: Moda, no sentido de fashion, e uma moda, esta última no sentido mais material, de modismos passageiros. Claro que estão vinculadas e uma depende da outra para existir, e há muitas nuances nessa definição que não cabem aqui nesse curto texto, feito para trazer curiosidade sobre o entrelace entre a moda e a literatura. Essa distinção nos ajuda a compreender como, por meio da engrenagem do novo (que é mixado com o antigo), a moda se mantém. E hoje ela paga o preço da pressa, pois, ao acelerar seu sistema com o fastfashion, vem sentindo o desgaste em sua própria capacidade de inovar (mas isso é outro assunto).

Tudo isso é matéria para o escritor. A moda é parte de um “fio social” – para usar uma expressão de Antonio Candido ao associar a escrita machadiana aos salões e rumores da sociedade de sua época (século XIX). Não por acaso, Machado possui narrativas baseadas nas conexões sociais por meio da moda.

Há uma exigência social e cultural no indivíduo, interna e externa, que faz da moda um demarcador do tempo. Por meio da imagem de moda, podemos saber muito do contexto geral de uma época. O que se altera na sociedade irá refletir na imagem das pessoas e a imagem das pessoas alterará os sentidos da sociedade, e isso tudo está expresso na cultura, na arte, nas micropolíticas, nos artefatos que produzimos.

É um movimento circular. Foi o que Baudelaire (O pintor da vida moderna) quis dizer quando explicou que ao olhar gravuras de moda sentia “um encanto de dupla natureza: artística e histórica”. Por meio dos desenhos que via, era possível observar “a moral e a estética de uma época”. Obviamente se referia ao sentido filosófico de moral, que diz respeito ao conjunto de regras estabelecidas por uma sociedade que são adquiridas por meio da cultura, os costumes de um povo, mas que também serve para analisar outros aspectos da moral. A moda é manifestação de pensamentos conscientes e inconscientes e os torna reais.

A imagem de moda, no texto ficcional, é capaz de materializar o pensamento do leitor, torna o texto lido mais próximo, a personagem mais verossimilhante. A imagem é capaz de evocar as coisas pensadas, lidas, vistas, os cheiros, os gostos, calores e volatiliza tudo em sensações e emoções. Ela conecta mundos aparentemente distantes, como a moda e a literatura.

Por meio da imagem de moda elaborada criativamente em palavras no texto ficcional, que depois se tornarão novamente imagem na mente do leitor, é que nasce essa relação. Na literatura, a moda surge como estratégia criativa de escrita para realizar imagens na mente do leitor, seja de ordem histórica, estética ou tática.

Quando são de ordem histórica, contam detalhes de uma época, contextualizam, evocam e guardam memórias. Quando são de ordem estética, encantam, emocionam e arrebatam. Quando são de ordem tática, têm função estratégica, de controle, como quando Machado de Assis apresenta um descritivo quase vazio de imagens no aspecto vestimentar dos gêmeos Esaú e Jacob para não expor o argumento de sua narrativa; ou quando descreve Capitu de forma incongruente para manter as dúvidas do leitor sobre sua honestidade ou dissimulação. E todas essas camadas podem ocorrer em uma mesma obra, a depender da habilidade do escritor.