Duas frases de duas escritoras me fizeram decidir que era hora de deitar no papel as histórias de minha mãe. A primeira é de Toni Morrison: “se há um livro que você quer ler e ele ainda não existe, escreva-o”. A outra é de Socorro Acioli: “escreva a história que só você pode contar”.
Escutei essas duas sentenças logo quando comecei a estudar Literatura, em março de 2018. E me dei conta do volume de enredos, personagens, memórias e vidas que eu já tinha, tudo dito pela boca de uma mulher de quase 90 anos. E tudo anotadinho, salvo num esconderijo nem tão esconderijo assim chamado Facebook.
Desde que mamãe passou a morar comigo, lá em 2010, a rotina da gente virou cadeira na calçada, palavreado, água nos jardins, cantoria, afazeres domésticos, gargalhadas, amor, cheiro no cangote e um bocado de causo do lugar onde ela nasceu. Uma tal de Jandaíra, vizinho a um tal de Cafundó (que, na verdade, era o endereço do coração dela).
O livro que lancei em março de 2020 nasceu, na verdade, oito anos atrás. No dia em que postei pela primeira vez algo sobre ter, aos 24 anos, mãe e pai morando sob o mesmo teto, o meu teto, pela primeira vez. Lembro bem. Foi como nascer já sendo adulto. Nascer num mundo onde todos os meus amigos haviam nascido quando lhes deram à luz bebês, como é o normal da vida.
Quanto mais eu escrevia sobre as tiradas de mamãe, mais gente se identificava. A velhinha tinha uma língua afiada. Pensamento ligeiro que nem as onças lá do Cafundó da infância dela. E, de repente, minha mãe virou a mãe de um monte de marmanjo e mulher feita. Ao ponto de a gente chamá-la de “velhinha blogueira”, tamanho o sucesso das fotos, vídeos e textos.
Sem ninguém saber, eu guardava as postagens. Anotava muita coisa em caderninhos, botava outro tanto no fundo da memória… Até ouvir as frases de Toni e Socorro, esbarrar em pedidos pra escrever um livro sobre as histórias de minha mãe e a vida me colocar no caminho, como professor, um jornalista que admiro e de quem há anos desejava ser aluno.
Ronaldo Salgado leu cada memória de cada crônica com um zelo tão grande! Respeito ao meu estilo e às histórias que formam mamãe. Produzimos os textos do livro entre fevereiro e maio de 2019. Quatro meses intensos de redação e edição. E e-mails e mensagens de WhatsApp. E inseguranças e medos. E felicidades e certezas.
As 17 histórias foram meu trabalho de conclusão de curso. Tudo escrito enquanto a editoração do material corria em paralelo, porque Ronaldinho queria um protótipo do livro. “É bom pra você ver seu sonho materializado e não desistir dele.” O professor com quem tanto sonhei tinha razão. Foi fundamental pegar aquele projeto de livro.
Tenho ele até hoje. Quando coloco ao lado da versão final, editada pela Moinhos e que tem ganhado o mundo, penso no tanto de minha mãe que tem nele. No tanto de mim que há ali. E no tanto de ficção que precisei dosar pra haver verossimilhança nas crônicas.
Posso dizer que E, no princípio, ela veio: crônicas de memória e amor é um livro gestado há oito anos. Que maturei todo esse tempo sem saber que se tratava de um livro. E que se mostrou pra mim como tal porque Literatura é isso: possibilidade.
Ter lançado minha primeira obra foi como nascer de novo. Porque pra mim, um homem negro, livros nunca foram apresentados como possíveis. Eram apenas objetos. Não lugares. Todas as histórias que li e que me foram contadas ou tinham brancos como protagonistas ou foram escritas por brancos. Ter escritores negros em quem me espelhar foi algo percebido recentemente. Na fala de Toni Morrison, por exemplo, ouvida em 2018.
Agora, com a Literatura compreendida como um lugar de possibilidades, sou eu, um homem negro, nordestino, gay e filho de uma mulher incrível chamada Tereza quem escreve as histórias. As minhas histórias. As histórias de minha mãe. As histórias de todos os personagens que eu desejar. As histórias dos livros que eu gostaria de ler. As histórias que só eu posso contar.
por Bruno de Castro