Laís Ferreira, em meio ao isolamento que o covid-19 inseriu a sociedade brasileira, buscou na escrita, nos poemas, um alento. Ela nos enviou esses três poemas de quarentena para dividir conosco um pouco de si e do momento que vivemos.
cada espaço vazio
há alguns dias, fazia eu um bolo de maça.
em determinado momento, colocava ainda
(um pouco)
de cravo de canela e de cacau em pó.
fui abrir a caixinha de cacau, no rótulo
estava escrito assim, meio escondido
entre
as possibilidades de se abrir ou se fechar:
‘cada espaço vazio é um espaço para que se tenha algo’.
o susto da frase não veio tanto pela lógica
do que é contido, do que é contem.
o caso é que o vento não sopra onde
não há espaço para que se respire.
hoje, eu penso assim nos espaços vazios
nas ruas
esvaziadas, nas próprias mãos vazias
onde já não é seguro sequer o espaço
tempo de um abraço, um aperto firme
sem espaço entre as palmas. hoje
é como se o vento disesse sutil
(uma vez mais)
a necessidade dos vazios entre
a estrutura dos alvéolos, o vazio
para que um diafragma se preencha
ou se esvazie na força de um ser.
é a beleza mesmo do espaço vazio
de uma folha em branca, a beleza
de se enviar uma carta como vai
a beleza
de um texto de preocupações uma lista
do que é necessário para sobreviver
ou apenas um espaço em branco
para dizer dos tons de todas as cores
quando velozes.
cada espaço vazio parece ser agora
o avesso do que se tem, o som de um peito
rouco.
cada espaço vazio parece ser um espaço
para se ver de longe, o engenho necessário
a essa matéria a pulsar sob a certeza
de toda a vida que resplandece no alto
quando uma única estrela solitária brilha
em qualquer noite de neblina e nuvens.
*
os joelhos fixos em respirar fundo
agora me lembro do que aprendi
em uma aula de fisiologia: a pele
não é dos maiores órgãos do corpo.
se esticássemos a superfície dos pulmões
teríamos um território próximo à área
de meio campo de futebol. agora
penso no que pode ser a natureza
de um pulmão doente, as cidades
possíveis de serem guardadas
dentro de um perímetro do espaço,
o terreno
onde cresça uma árvore brônquica.
agora, se sabe de um pulmão o tempo
impreciso de um toque, o elo
entre o ar que nela penetra e o calor
de duas mãos dadas, a firmeza
dos dedos que se apertam em confiança.
um pulmão guarda em si a possibilidade
de uma partilha invisível, este ar
mais penetrante que qualquer gesto,
uma pele
não circunscrita aos membros. raia
outra vez esse dia: é um sopro morno,
a esperança
tem os joelhos fixos em respirar fundo.
*
as cordas desta aurora
aqui se sabe de nossa voz
o tom
pela forma como nascem
nossas pregas vocais
as cordas
entre um lado e o outro.
é preciso assim espaço
vazio
entre dois lados, é ainda
necessário um vão entre
o que absorvemos,
o que emitimos do lado
de fora de nós. hoje,
este ar que nos penetra
vigila
uma carta à distância,
uma prece por quem
o rosto já não vemos.
com o peito insuflado,
sabemos que o mar
não navega em linha reta:
são estas as ilhas celestes
de uma flor que nasce
ainda
em bronquíolos em sigilo.
*
Por Laís Ferreira, autora do livro de poemas “Ao norte, ao chão”.