Publicado em

O horizonte inalcançável em obra de Margarita García Robayo

Emigração latina, negação das raízes e o contraste entre sonho e realidade em “Até que passe um furacão”, primeiro romance da escritora colombiana publicado no Brasil

“Sonhar não custa nada”, já diria o ditado popular que se tornou parte de um samba-enredo. A questão é saber o quanto custa para realizar um sonho – financeira, física e psicologicamente –, se esse for o real objetivo. Qual é o preço a se pagar para chegar onde deseja? O quanto de si é preciso doar para alcançar o objetivo traçado? Vale a pena passar por cima de tudo e de todos para conquistar o que tanto sonha?

Perguntas desse tipo quase sempre passam pela cabeça de quem quer algo novo na vida. Pesar os prós e os contras é um dos primeiros passos para quem planeja uma mudança. Porém, nem sempre é a regra, ainda mais ao se tratar de uma mudança radical de vida por insatisfação ou desgosto com a atual situação em que se encontra. Buscar os meios disponíveis e criar os indisponíveis para conseguir chegar no destino traçado requer esforço, força de vontade e persistência. Há quem consiga, com certo mérito, e se torne um exemplo a seguir. Há quem não tenha tanta paciência para enfrentar as pedras no caminho e escolha um desvio supostamente mais fácil, mas que traz consequências percebidas no corpo e na alma e questionadas com o tempo.

Dilemas que fazem parte da vida de toda gente, mas que são constantes para quem vive nas periferias ou naquele lugar que não é nem uma coisa nem outra, um meio indefinido que suplica por definição, dispostas a negar suas origens para chegar onde almeja. Ouvimos (e vemos) muito sobre essa realidade na América Latina, e é o que encontramos em Até que passe um furacão, primeiro romance de Margarita García Robayo, escritora colombiana radicada na Argentina, primeiro a ser publicado no Brasil pela Editora Moinhos.

Narrativas breves, impacto permanente

Nada contra textos longos, ricos em detalhes que nos fazem imaginar cenários existentes e inventados à perfeição como se já tivéssemos estado no lugar. Obras assim são fascinantes, mas é de se aplaudir quando alguém consegue o mesmo feito escrevendo de forma sucinta. Textos curtos nem sempre são sinônimos de textos simplórios, sem corpo, sem “sustância”. E na arte de escrever pouco e impactar muito Margarita García Robayo tira de letra.

Nascida em Cartagena em 1980, a escritora partiu de sua terra natal pouco depois de completar 18 anos e, desde 2004, mora em Buenos Aires. Tanto na Colômbia quanto na Argentina, Robayo escreveu para mídias físicas e digitais, como o blog Sudaquia: historias de América Latina, do jornal argentino Clarín; a coluna La cuidad de la fúria, no diário Critica de la Argentina; um periódico na revista colombiana Soho; e o folhetim Mi vida y yo, na Revista C, usando o pseudônimo Carolina Balducci. A escritora também já foi professora na Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (instituição criada por Gabriel García Márquez) e diretora da Fundación Tomás Eloy Martínez.

Habituada a textos curtos, Margarita transmite uma essência encorpada aos relatos feitos em crônicas, contos, ensaios e novelas, qualidade reconhecida e premiada internacionalmente. Publicou os livros de contos Hay ciertas cosas que una no puede hacer descalza (2009), Las personas normales son muy raras (2011), Orquídeas (2012) e Cosas peores (2014), este último agraciado com o prêmio Casa de las Américas. Entre as novelas, estão Hasta que pase un huracán (2012), Lo que no aprendí (2013), Tiempo muerto (2017) e Educación Sexual, que foi publicada de forma fracionada entre os números 114 e 119 da revista Piauí (2020). No Brasil, participou da Festa Literária Internacional de Cachoeira (Bahia, 2018) e teve o ensaio El Mar publicado na 7ª edição da revista Puñado (editora Incompleta, 2021). No cenário além América, a Charco Press lançou no Reino Unido a coleção Fish soup e o romance Holiday heart, ambos premiados com o PEN Awards.

Agora, pela primeira vez publicado na íntegra, o romance Até que passe um furacão chega em terras brasileiras pela Editora Moinhos, com tradução de Sílvia Massimini Felix, obra em que Robayo prova que “menos é mais” e coloca intensidade na medida certa para acertar pontos vitais da realidade latino-americana, como uma acupunturista que não sana as dores, mas as releva ao falar da busca por um sonho que, por vezes, não passa de uma quimera.

Sonho realizável ou utopia coletiva?

A história da América Latina se confunde entre os países. Todos compartilham de dois lados: o cartão postal onde os turistas ostentam fotos e esbanjam dólares, locais bem estruturados e bem financiados, onde os sorrisos se manifestam; e o lado da realidade da grande maioria que vive à beira dos cartões postais, em meio a descaso social, infraestrutura negligenciada e ostentando um imenso desejo de fugir. A fuga se torna o único meio para que as coisas melhorem e é esse desejo de fuga que sente a protagonista de Até que passe um furacão, primeiro romance de Margarita García Robayo.

A jovem não nomeada narra sua vida como residente da costa do Caribe colombiano, destino turístico para tantos, lugar indesejado por ela. Sua vontade é ser estrangeira, partir do país de origem, renegar seu passado e viver o sonho americano, um clichê latino-americano tão visado a ponto de as pessoas se sujeitarem ao que for necessário, desde travessias perigosas até a entrada ilegal na América do Norte e um compromisso romântico ao estilo 90 Dias para Casar (reality show do canal TLC/Discovey) para garantir o green card.

A protagonista de Robayo está disposta a usar todos os artifícios de que possui para conquistar seu sonho e nos conta a sua vivência em um bairro que alaga em dias de chuva intensa e deixa o barro que é carregado pelas botas para dentro de casa. Ela não quer o comodismo dos pais que não fazem questão sair de onde estão; ela quer se mover, correr atrás de seus objetivos e ter tudo o que acredita merecer. E aprendeu desde muito nova como conseguir, por abusos sofridos e mal percebidos por não ter quem os denunciasse a ela.

Dentre várias tentativas, ser comissária de bordo foi um meio que conseguiu de sair do solo e voar ao país tão cobiçado, conhecer pessoas influentes (ainda que de forma duvidosa), apaixonar-se, querer mais e, enfim, dar-se conta de que, onde quer que esteja, a realidade se difere daquilo que está na nossa cabeça. Não existe um mundo encantado e repleto de oportunidades promissoras. Há dores, há tédio e há a eterna sensação de que “o movimento é uma ilusão”. O sentimento de não pertencimento nem sempre desaparece com a conquista do objetivo, ele fica estagnado tanto quanto se não tivesse saído do lugar, como se esperasse o furacão passar. E ele nunca passa.

Com objetividade, crueza um toque niilista, Margarita García Robayo nos entrega uma obra que conversa com a realidade do lado de baixo do nosso continente, abordando temas sociais, políticos e pessoais inerentes à América Latina, assim como reflexões intimistas que revelam o abandono, a violência e desdém destinado à nossa gente, em especial aos que vivem de forma mais vulnerável, na pobreza ou que dela beiram.

Cirúrgica em todos os pontos, a escritora colombiana coloca em poucas páginas uma imensidão de acontecimentos com a promessa de impacto. E o impacto realmente vem!

Um dos últimos lançamentos da Moinhos de 2022, Até que passe um furacão é a garantia de uma leitura rápida, porém impressionante, carregada da força da escrita elogiada de Margarita García Robayo, uma das mais proeminentes vozes da literatura latino-americana.

Conheça Até que passe um furacão clicando aqui!

Publicado em

Cristina Bendek: Identidade, cultura e cenário sociopolítico em obra de estreia

Novela da escritora colombiana ganhou a primeira edição do Prêmio de Novela Elisa Mújica, em 2018.

O ato de deixar a terra natal pode representar tanto a busca por novas experiências em diferentes ares quanto a fuga de uma realidade nem sempre desejada. Mas o ditado “nós saímos da cidade onde nascemos, mas a cidade onde nascemos não sai de nós” por diversas vezes se faz verdadeiro e o retorno acaba sendo inevitável.

Embora as origens clamem pelo regresso, inevitável também é o choque de realidade ao constatar que aquele lugar-berço já não é mais o mesmo. Sentir-se pessoa estrangeira no próprio lar e perceber que, assim como mudamos com o tempo, a influência dos acontecimentos externos contribui para a formação de novas características acatadas como típicas de um povo, resultando em sua ascensão ou declínio.

Em uma mistura de ficção e crônica, a escritora colombiana Cristina Bendek retrata a realidade de sua ilha natal e a cultura local ao narrar as descobertas sobre as origens de uma filha desgarrada da terra.

os cristais do sal imagem capa

Ficção que evidencia a realidade

O indubitável tom de crítica social logo em um primeiro trabalho literário talvez se explique com a própria vivência da autora. Cristina Bendek nasceu em San Andrés (Colômbia), mas transitou entre Bogotá e Cidade do México durante treze anos. Graduou-se como profissional em Governo e Relações Internacionais e, em 2016, regressou à sua ilha natal para se dedicar à escrita, aliando o ofício aos trabalhos de empreendedorismo, jornalismo e crítica.

Pelo longo período de deslocamento, o choque em decorrência das perceptíveis mudanças no cenário tão conhecido da infância é uma consequência inevitável. A chegada da modernidade, a urbanização e a exploração do turismo ao vender uma imagem paradisíaca da ilha fazem um contraponto com a ruralidade, a cultura local e a identidade raizal da população de San Andrés.

A intensa percepção da realidade contraditória da ilha – o perfeito refúgio turístico caribenho que esconde a escravidão econômica e o descaso político perante o continente – é exposta na obra de Bendek, que relatou que sua novela de estreia tem muito de crônica, pois, apesar da ficção e da poesia contida em sua narrativa, retrata a realidade por ela percebida e, então, transformada em arte na forma literária.

Trabalho tão intimamente vivido e apresentado de modo a instigar reflexões acerca de questões políticas e sociais rendeu à jovem escritora, nascida em 1987, o Prêmio Nacional de Narrativas Elisa Mújica, promovido por Idartes e Laguna Libros (voltado exclusivamente a escritoras para promover a literatura feminina na Colômbia), em sua primeira edição no ano de 2018.

A busca pelas origens, o encontro com a nova realidade

Cristina Bendek presenteou a literatura do Caribe (e também a latino-americana) com a novela Os cristais do sal, obra que representa a realidade dos habitantes da ilha de San Andrés, tanto no quesito cultural quanto no âmbito social, econômico e político.

Ao narrar os passos de Victoria Baruq, a autora põe em foco a vida dos islenhos conhecidos como raizais, povo oriundo de uma miscelânea de etnias, do arquipélago e do continente, que acabaram por criar uma identidade própria, ao mesmo tempo em que não se sentem pertencentes a lugar algum, não se consideram provenientes de uma origem única. É a busca por tal origem que move os caminhos trilhados pela protagonista que, com o sentimento de não-pertença, deixa sua terra-mãe em busca de novos rumos, mas não escapa do magnetismo do seu berço.

Em meio a encontros e desencontros, achados e perdidos, o holofote é direcionado a outro ponto importante para a ilha caribenha que, com o passar do tempo, vê a chegada dos avanços da modernidade e a oportunidade no ramo do turismo. O que muito tem de promissor, pouco tem de retorno ao se deparar com a negligência do Estado para com os habitantes da ilha, a falta de infraestrutura para os residentes contrasta com o que é oferecido aos turistas. O choque de realidade decorrente da globalização não foge aos olhos da personagem do livro, assim como escancara a ferida da exploração encoberta pelos folhetos e fotos de belas praias.

Apesar de carregar o peso de uma nação, Bendek alivia o fardo com sua escrita que traz os elementos críticos da crônica e a leveza da poesia. A busca pela identidade através do resgate genealógico é o retrato de muitos filhos de uma terra a qual se sentem tão íntimos e, ainda assim, tão distantes. Essa característica, além de laurear a autora sanandresana, coloca o arquipélago em destaque na literatura nacional colombiana.

Os cristais do sal chega ao Brasil pela Editora Moinhos, no catálogo de lançamentos do primeiro semestre de 2021. Com tradução de Silvia Massimini Felix, o livro carrega uma premissa realista um tanto densa, sem abrir mão da suavidade dos eventos corriqueiros, atraindo os olhares para uma autora que ainda pode contribuir muito para a literatura latino-americana.

Clique aqui para conhecer Os cristais do sal, de Cristina Bendek