por Aline Teixeira
Autor estreia com livro de contos que revelam sentimentos tão inerentes quanto conflitantes.
Um livro carrega consigo um leque de possibilidades, as quais só são descobertas no decorrer da leitura. Alguns, em poucas páginas, já relevam mundos fantásticos; outros quase agem como teste vocacional ao provar os dotes policiais, científicos ou acadêmicos do leitor. Tem livros que prometem e cumprem a missão de fazer chorar, aquecer o coração ou render bons sustos. E há aqueles que enganam.
Ler relatos do dia a dia de alguém, ainda que na ficção, pode parecer uma zona de conforto. Todos acordamos, tomamos café, lavamos a louça, vez ou outra apreciamos uma obra de arte, não é mesmo? O que torna as coisas um pouco mais complexas é quando se é pego de surpresa pelo que há nas entrelinhas, coisas que às vezes são reveladas somente no último parágrafo, na última palavra, na última página. É aí que vem a comoção, a indignação, o encanto, a raiva, até a vergonha pelo sentimento compartilhado.
Em sua estreia na literatura, o escritor gaúcho Gabriel Fragoso apresenta 12 contos em uma obra delicada, intensa e sensorial, que pode se encaixar na categoria dos livros que enganam, mas que não subestimam.
Sensibilidade artística traduzida em palavras
Encontrar potência e delicadeza na mesma medida em uma obra literária é um presente. Saber que a obra é um livro de estreia torna a surpresa ainda mais grata. No caso de Gabriel Fragoso, prévias desse talento – que podemos chamar de dom – vêm sendo mostradas em outras artes antes da escrita.
O escritor de 27 anos de idade nasceu em Torres, litoral gaúcho, e mostra suas veias artísticas desde muito novo como bailarino, transmitindo através da expressão corporal a intensidade e a leveza requeridas pela dança. Como artista visual, expressa em seus projetos fotográficos, de ilustrações e de colagens, a mesma força capaz de causar impacto a quem aprecia.
Tamanha sensibilidade não poderia deixar a escrita de fora e, de fato, a escrita faz parte da vida de Gabriel. Publicitário de formação, usou a comunicação para publicar seus textos em revistas, coletâneas, trabalhar com literatura e partir para os estudos na área, graduando-se em Escrita Criativa pela PUCRS e já se preparando para um mestrado.
Alguns de seus textos receberam prêmios e agora Gabriel mostra o talento com a publicação de seu primeiro livro, angariando mais um novo feito em seu ciclo artístico, evidenciando (novamente) sua capacidade de atingir em cheio quem aprecia sua arte e o tornando uma grande promessa para o meio literário.
Tão intenso quanto a fome
Há títulos que dizem muito sobre o livro, mesmo quando parecem não ter sentido. Da mesma forma, há livros que fazem todo o sentido, ainda que pareçam absurdos ou tão corriqueiros que não reservam nada além do habitual. É justamente com um título aparentemente absurdo e escrita simples que Gabriel Fragoso faz incisões precisas no que cada um dos 12 contos propõe, como bisturis que cortam a carne e chegam naquele lugar profundo, tão profundo que não é palpável, mas intensamente sentido.
Baleia morta e outras fomes é um compilado de breves relatos que, de algum modo, conectam entre si e se conectam com quem os lê. O formato dessa colcha de retalhos é percebido aos poucos, às vezes quando menos se espera ou quando tanto se deseja, para que o sentimento provocado tenha uma justificativa.
Entre o solidarizar com o sofrimento, o extasiar com um momento de prazer e o repugnar com uma cena de tortura, com palavras que parecem um tomar pela mão, o autor encaminha o leitor por um banquete de sensações extremas e o deixa com fome, com aquela vontade que vem do âmago por saber mais, por experimentar mais. E Gabriel, como um habilidoso chef, põe à mesa uma variedade de sentimentos que todos têm, mas nem todos – nem sempre – gostam de sentir, embora queiram, até precisem e sequer se dão conta.
Gabriel imprime sua marca que mescla intensidade com sensibilidade e complementa ao trazer as artes ao livro, especificamente uma obra de arte, o quadro Vista das areias de Scheveningen de Hendrik Van Anthonissen, cujo a impressão literal da imagem empresta o nome à obra e o sentindo que se esconde nas pinceladas e nas entrelinham dá o tom de todo o trabalho, em especial do conto-título, um dos mais significativos da coletânea. É o óbvio que está escondido e que se torna estranho ao ser revelado, como uma frase que soa bizarra ao ser dita em voz alta. Com ilustrações de Gustavo Lindermann e posfácio de Altair Martins, Baleia morta e outras fomes faz parte do catálogo de lançamentos do primeiro semestre de 2021 da Editora Moinhos, colocando Gabriel Fragoso no hall de escritores brasileiros da casa, produtores de literatura nacional contemporânea de qualidade.