Publicação

Postectomia ou a arte de aparar excessos

12 de setembro de 2020

Organizar um livro de contos é sempre um desafio. O que vem primeiro? Como estabelecer ordem entre as histórias? Pensar nessa arquitetura narrativa é fundamental para que não seja um compilado aleatório de contos, mas um livro.

NO sagrado coração do homem (Moinhos, 2018), ao escolher trabalhar com releituras e paráfrases dos personagens masculinos da Bíblia, esse grande problema foi sanado. Eu tinha um gabarito prévio: bastava seguir a ordem das Sagradas Escrituras. Essa saída simples, rápida e eficiente garantiu uma coerência interna ao livro e evitou maiores dores de cabeça para encaixar as narrativas.

Mas como escritor sempre busca uma tormenta, inventei de escrever um texto de abertura, que estava fora da ordem bíblica. Era uma espécie de apresentação, intitulada Ladainha de todos os homens, uma reza prévia para situar onde o leitor pisaria. O mantra inicial, a louvação às Musas, ou melhor, aos musos, os homens, essa inspiração central e soberana da sacrossanta literatura.

Estava tudo resolvido, original finalizado, até que em uma noite de insônia, as vozes na cabeça sussurram um texto, intitulado Antes de Deus, mítico, incógnito, do tempo em que éramos quase macacos. Escrevi e gostei do resultado, só que não encaixava em nenhum lugar do livro. Foi quando percebi que era uma boa apresentação e tinha tudo a ver com a proposta.

Os dois textos brigavam por atenção e espaço no livro, ambos queriam a primazia de ser a narrativa inicial. Não soube escolher, tenho a mania de querer aproveitar os textos [se foi escrito que seja lido, coitado], então deixei os dois. E assim encaminhei o arquivo com duas cabeças para a chamada de originais da Moinhos.

O original foi aprovado para publicação, seguiram-se os trâmites todos, até que recebi o arquivo comentado por meu editor, Nathan Matos. Ele fez um apontamento muito simples em uma nota no Word, dizendo que entendia a proposta, mas não sabia se aquele texto era a melhor opção para introduzir o livro.

O rápido comentário foi o suficiente para compreender que o texto estava sobrando. Ao falar de homens, o original sofria de fimose. A ladainha de todos os homens podia até fazer parte, estava no contexto, mas de alguma forma sobrava. Era como se impedisse o livre fluxo do livro. Era uma entrada estreita, pouco convidativa, que podia atrapalhar o intercurso da leitura. A decisão foi simples: cortar, como um boa cirurgia de postectomia.

Aparado o excesso, o conto Antes de Deus pôde se apresentar com toda potência, ganhar espaço e atrair leitores e leitoras de maneira mais sedutora. Um convite para ir devagar, sem tanto alarde, aos poucos, confortável, até que a cadência aumenta e o ritmo fica vigoroso e intenso. Mas aí já é tarde demais. Pelos relatos que recebo, depois que começa tem que ir até o fim. Não sei se o livro penetra em quem lê ou se quem lê penetra no livro. Talvez ambos.

Da experiência de escrever e editar O sagrado coração do homem ficou uma lição: é importante não atrapalhar o intercurso narrativo. Se há excesso: corte-se.

Mas ainda tenho apego pelo excesso extirpado, afinal não é fácil jogar fora um pedaço de si. Por isso reproduzo a seguir, antes que vá para o lixo:

Ladainha de todos os homens

O que homem mais gosta: homem.

Homem, homem de verdade, não esses afrescalhados que escrevem contos, gosta de coisas de homem. Livros escritos por homens, sobre homens; músicas de macho para macho; imagens atléticas, varonis, másculas. Carros tunados, cromados, potentes. Super-herois malhados em justas malhas, para deleite dos olhos sedentos por corpos torneados, ressaltando bem o volume da cueca.

O sonho de todo homem é ter Bukowski bêbado recitando poemas sujos ao pé do ouvido. Ali sim literatura de macho. Deviam até dar outro nome, poesia é fresco demais, coisa de mulherzinhas e baitolas. É preciso nome varonil, para que homens leiam sem agressões à sua frágil estrutura. Que não sejam poetas, mas poeteiros, a escrever poemas eretos, sonetos de bacon e picanha.

Homem de verdade tem coleção particular de machos: jogadores de futebol, pilotos de Fórmula 1, astros do rock, do cinema e heróis de quadrinhos. Também revistas de mulher pelada, mas só para mostrar aos amigos e ver suas caras de prazer.

Homem, de verdade, junta a galera no bar, rodadas de cerveja e MMA no telão, esse sim esporte de macho. Musculosos, entrelaçados, íntimos, realizando o sonho de contato com outro macho, tão desejado quando proibido.

Homem gosta de toque vigoroso: trombada no futebol, agarros no judô, abraço coletivo no vôlei. Homem de verdade odeia balé, bailarino como suporte para bailarina voar, leve, plácida, quase inexistente. Se fosse bailarino segurando vigoroso outro bailarino, aí sim seria coisa de homem. Protagonismo masculino, a supremacia, irmãos.

Homem de verdade fala mal de mulher. Bom mesmo é homem, que não tem frescura, é parceiro, sincero, brother, mano, sem mi mi mi. Homem de verdade gosta de corpo trincado, cheirando a churrasco e cerveja. Suor e urros na academia são afrodisíacos para macho, essência e música masculina.

Homem gosta tanto de homem que fala de mulher para ficar perto de outros homens.

Homem, homem de verdade, gosta de peitoral farto, braços musculosos carregando tora de madeira. Homem gosta é de macho e, quanto mais: melhor. Onze é o número mínimo para a felicidade, multiplicado por dois, com arquibancadas cheias e ainda tantos outros reunidos em frente a TVs high-definition, telas tão grandes quanto seus egos vazios.

Homens na política, homens na economia, homens descontrolados no controle das igrejas e dos lares, homens inseguros a cuidar da segurança. Homens, todos eles, vertigem de homens maravilhosos, irrestritos, machos sem vírgula ponto nem porteira segurem suas cabritas que os bodes estão soltos.

Homens, muitos, em todos os lugares.

Assim na terra como no céu.

Sempre e para sempre.

Amém.

por Michel de Oliveira

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