No pampa argentino, na metade do século passado, argentinos e imigrantes trabalham na terra e com a terra em pleno verão ardente, sob uma aparente calma. É preciso cultivar os grãos, levar o gado para pastar, ordenhar as vacas, domar cavalos, cuidar dos porcos e da vida alheia. São hábitos diários, assim como remendar calcinhas, ouvir rádio e compartilhar o mate. Por causa disso, a protagonista de Janeiro, uma adolescente de dezesseis anos chamada Nefer, anda muito angustiada. Desde o começo da trama, ela vive o terror de: o que será que vão pensar?
Nefer foi estuprada e está grávida. Assim sabemos, de uma vez, do mesmo modo que arrancamos um curativo da pele. E como lidar com uma situação dessas e, ainda por cima, em uma comunidade que não tem e/ou nega acesso à informação, à saúde e a qualquer possibilidade de afeto? Logo chegará o tempo da colheita e, com ela também a barriga prenha, por conta disso, o corpo de Nefer, quase impróprio, só espera mesmo por um milagre.
Sara Gallardo, autora de Janeiro – sua primeira obra publicada e ainda nos anos 1960 na Argentina – provavelmente não sabia o quanto sua obra ganharia o mundo e se tornaria um marco na literatura nacional não só pela subversão da tradição naturalista/realista, mas também por trazer à luz alguns temas fundamentais muito antes de que estes se tornassem pautas urgentes na boca de todes.
A tradução chega ao Brasil em boa hora. Em tempos de gritos de ofensa e correntes “à favor da vida” em porta de hospital, onde uma menina grávida por estupro é operada, o romance nos traz a perspectiva da vítima, que, com a voz possível, nos emociona enquanto busca, nos detalhes do cotidiano, um respiro, uma distração para a ternura.
Ellen Maria Vasconcellos
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